No caderninho de Miguel Gularte, a receita (à moda antiga) que resgatou a BRF
Toda segunda-feira, pontualmente às 8h, a principal sala de reunião do 15º andar do Condomínio Parque da Cidade, um dos principais endereços comerciais de São Paulo, se torna o quartel-general da BRF, a dona da Sadia e Perdigão. Nela, mais de uma dezena de diretores e vice-presidentes prestam contas sobre indicadores e projetos em andamento para Miguel Gularte, CEO da firma desde setembro de 2022. “O futuro começa na segunda-feira”, costuma dizer o executivo.
Com um caderninho em mãos, Gularte escuta, anota e cobra – a reunião pode se estender por todo o dia. Nenhum detalhe escapa ao CEO, conhecido por seu estilo meticuloso e avesso a atrasos. O médico veterinário de 66 anos, natural de Bagé (RS), fez carreira na indústria de alimentos, em especial nos frigoríficos de carne bovina – Gularte comandou a operação da JBS no Mercosul entre 2013 e 2016 e, depois, comandou a Marfrig de 2018 até agosto de 2022, antes de chegar à dona da Sadia.
Essas reuniões semanais na BRF, implementadas pelo antigo CEO Lorival Luz (2019-2022), ganharam ainda mais importância na gestão Gularte. “O Miguel trouxe o estilo Marfrig de microgestão. Índices e parâmetros para tudo”, relata uma pessoa próxima do dia a dia da firma ouvida pelo InvestNews. A visão de Miguel Gularte é de que a indústria frigorífica se assemelha a um quartel, e que a disciplina é fundamental. Essa forma de pensar e gerir chacoalhou a diretoria da BRF. “Ele é o homem do caderninho, um estilo anos 80. Bem metódico”, diz outra fonte.
O perfil “militar” do CEO é apenas uma amostra do novo momento da BRF desde que a Marfrig, do empresário Marcos Molina, assumiu as rédeas do negócio. E o resultado da gestão “no caderninho” até agora vem dando certo. A dona da Sadia voltou a registrar lucro líquido no fim de 2023 após sete trimestres de prejuízos e, em 2024, anunciou sua primeira distribuição de proventos em oito anos.
Nascida como Brasil Foods no auge da política de “campeões nacionais” do governo Lula II, a BRF é uma das maiores produtoras de carnes do mundo, com especialidade em proteínas de frango e suína. Emprega hoje mais de 100 mil pessoas e fatura cerca de R$ 50 bilhões por ano. Mas o maior ativo da companhia, sem dúvida, são as marcas Sadia e Perdigão.
A principal concorrente é a Seara, que pertenceu à Marfrig até 2013 e hoje é controlada pela rival JBS, maior produtora de carnes do mundo. Aliás, atualmente, a estrutura da dupla BRF-Marfrig se parece com a da firma da família Batista: enquanto Marfrig e a Friboi, da JBS, duelam pelo mercado de carne bovina, Sadia e Perdigão disputam palmo a palmo o segmento de carne frango, suína e alimentos prontos.
Molina e Gularte encontraram na BRF uma companhia que vinha fragilizada desde 2018, quando a Operação Carne Fraca atingiu o alto comando da firma, somada a uma aposta frustrada em meados da década passada de transformar a companhia em uma firma puramente de alimentos processados.
Mas, passada a turbulência, a BRF voltou a fazer aquisições e aparenta ter entrado nos trilhos – algo raro desde sua criação em 2009, quando a Perdigão incorporou a então rival Sadia, que havia entrado em colapso por problemas com seus métodos de proteção cambial.
A grande aposta
Desde maio de 2021, quando começou a comprar ações da dona da Sadia, Marcos Molina investiu cerca de R$ 13 bilhões para obter 50,49% de participação na BRF. Molina assumiu de fato a firma em março de 2022, como presidente do conselho de administração. Poucos meses depois, trouxe Miguel Gularte, seu executivo de confiança na Marfrig, para a cadeira de CEO da dona da Sadia. O movimento sinalizou a importância que a BRF tem para o empresário.
Molina, que construiu carreira como fornecedor de produtos para restaurantes (o chamado food service) antes de entrar no mundo dos frigoríficos, sempre defendeu em conversas com investidores que o valor das marcas da BRF (Sadia, Perdigão e Qualy) é muito maior do que o investido para assumir o controle da companhia.
“O foco do Molina sempre foi ter produtos de marca forte”, diz a fonte. “Ele tem um olhar para o consumidor final, tanto que vendeu frigoríficos que representavam somente abate [atividade com margens menores]”, acrescentou, lembrando a venda de 16 plantas da Marfrig na América do Sul para a concorrente Minerva por R$ 7,5 bilhões.
A transação enxugou a Marfrig e indicou que o foco do grupo passaria a ser a BRF. Desde então, as marcas da firma passaram a estampar os rótulos de linhas vendidas pela Marfrig. Recentemente, anunciaram que os cortes de carne bovina da Marfrig serão exportados com a marca Sadia, amplamente conhecida no mercado do Oriente Médio.
“Juntas, as duas companhias somam muito mais do que 1+1. A união de suas principais marcas no Brasil – Sadia Bassi e Perdigão Montana – e a definição de Sadia como a principal marca para expansão internacional do portfólio de bovinos são dois exemplos de geração de valor”, disse Molina, em mensagem aos acionistas.
O Oriente Médio, aliás, ganhou atenção especial do novo controlador. Prova disso é que Marquinhos Molina, filho do empresário, reside desde outubro do ano passado em Riade, capital da Arábia Saudita. Marcos Molina indicou que a estratégia da BRF é consolidar a “presença e liderança” no Oriente Médio. “Um dos mercados com maior crescimento populacional para os próximos anos, e onde a Sadia é líder na categoria de frangos e reconhecida como a marca preferida na região.”
Vale ressaltar que, desde 2023, a Salic, companhia estatal saudita para a segurança alimentar, investiu R$ 1,62 bilhão na BRF para ter 11,03% de participação na firma. A entrada da Salic ocorre numa sequência de ofertas subsequentes de ações (“follow-on“) que Molina promoveu para fortalecer o caixa da firma. No total, a BRF captou cerca de R$ 10 bilhões com as operações e reduziu drasticamente seu endividamento.
Balanço positivo
A BRF encerrou o terceiro trimestre de 2024 (dado mais recente) com uma dívida líquida de R$ 6,87 bilhões, redução de 33,7% na comparação com igual período de 2023. A alavancagem, indicador que considera a dívida líquida dividida pelo lucro operacional (Ebitda), ficou em 0,71 vez, contra 2,66 vezes de um ano antes. O lucro líquido foi de R$ 1,84 bilhão no período, o que permitiu que a firma distribuísse R$ 1,15 bilhão em juros sobre capital próprio (JCP) pela primeira vez desde 2016.
O resultado teve forte impulso das exportações de carne suína e de frango, que atingiram recordes em 2024 tanto em volume quanto em receita em dólar, segundo dados compilados pela Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA). É verdade também que o desempenho monetário foi impulsionado por um programa de otimização da operação, chamado de BRF+, implantado ainda em 2022.
Da mortalidade de aves nas fazendas à qualidade da desossa da carne de porco, todos os processos passaram a ser documentados e parametrizados – tudo registrado no caderno do CEO Miguel Gularte. Cada décimo de ponto percentual faz diferença para uma firma que abate mais de 5 milhões de aves por dia. Outro problema estava relacionado à gestão de estoques, que causava perdas de centenas de milhões de reais por mês com descontos, situação que foi superada alguns meses após a chegada da nova gestão.
Às compras
Tudo isso ajuda a explicar o novo momento da BRF: uma firma lucrativa que vende e exporta alimentos prontos, carne vegetal, bovina, suína e de frango. Com o caixa organizado, a companhia também retomou as aquisições.
No segundo semestre do ano passado, a dona da Sadia anunciou três compras, com investimentos que ultrapassam R$ 1 bilhão. A BRF adquiriu 26% da saudita Addoha por US$ 84 milhões, investiu outros US$ 42 milhões em uma fábrica de alimentos processados na China e mais R$ 312,5 milhões para adquirir 50% da fabricante de colágeno Gelprime.
Outra iniciativa de diversificação, a divisão de ração para pets, segue firme. Criada entre 2020 e 2021, Molina chegou a procurar compradores para a unidade por entender que ela não fazia parte do negócio principal da BRF. No entanto, com a firma reestruturada, a ideia foi abandonada por enquanto. “O pet food se adequou ao novo estilo BRF. Hoje, a casa está arrumada, mas sempre existe o que melhorar. Otimizar sempre”, completa a fonte.
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Esta notícia foi originalmente publicada em:
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Autor: Rikardy Tooge