Do “tchado” aos microssegundos: fim do pregão viva-voz na Bolsa faz aniversário


Quem conheceu num passado recente os espaços no Centro de São Paulo que abrigavam os centros de negociação de ativos monetários não consegue fugir da comparação. Os locais onde funcionavam os pregões viva-voz tanto na Bovespa como na BM&F ainda estão lá, mas quem quiser um vislumbre de como era a agitação dali vai precisar visitar o MUB3 – Museu da Bolsa do Brasil, que funciona no mezanino do mesmo prédio da rua XV de novembro onde os operadores se acotovelaram por décadas em busca dos melhores negócios.
Neste dia 30 de junho vão se completar 16 anos que as últimas ordens de compra e venda foram apregoadas pelos operadores na antiga BM&F, encerrando de vez o modelo no Brasil. Em 30 de setembro, há outra efeméride importante no calendário, pois será o aniversário de 20 anos do último pregão viva-voz da Bolsa de Valores de São Paulo.
Ainda na comparação, o que mais chama a atenção hoje é o silêncio. No prédio da Bovespa, além do museu, ainda se destaca um grande painel eletrônico com o índice da B3, no qual é possível ver a oscilação dos papéis – todos negociados digitalmente.

A calmaria só é quebrada quando algum grupo de estudantes visita o local. Na área que abrigava os operadores, são realizados eventos, como leilões de concessão, e eventualmente convidados são chamados para tocar a campainha de início dos negócios.
Um pouco mais adiante, no prédio da Praça Antônio Prado, o antigo espaço dos “pits” de dólar, juros, índices e commodities, entre outros, abriga hoje a Arena B3, que tem eventos corporativos e programação cultural, com apresentações musicais e peças de teatro. O local tem ainda um auditório com 159 lugares e um palco multiuso.
Nostalgia
Hoje, a transição entre a negociação presencial e a eletrônica pode ser considerada uma evolução natural, mas para quem viveu o auge do viva-voz, há uma ponta de saudade. O ex-operador Aguinaldo Ferreira Dias, que trabalhou por mais de 20 anos nas duas Bolsas, é hoje um dos mais requisitados guias do museu e não esconde a nostalgia.
Em entrevista ao InfoMoney, ele lembra que, em seus primórdios na década de 1980, o horário de funcionamento das Bolsas era restrito, das 9h até 13h. “Depois desse horário, nós ficávamos livres, devido à agitação que a gente passava no dia a dia (…) “Às vezes, nem voltávamos (…) Nosso almoço nessa época era para relaxar, né? Porque a tensão era muito grande. Então, nós íamos almoçar uma hora, voltávamos às quatro, às cinco, nem voltávamos”, lembra.
Essa “agitação” citada se traduzia num emaranhado de até 1,2 mil operadores recebendo ordens de compra e venda, usando códigos e gestos para se comunicarem rápido e anotando freneticamente os negócios nas boletas. “Tinha as nossas regras, né? Por exemplo, quando você chamava: compro ou fechado. Até nisso nós economizávamos na palavra. Era tchado. Justamente por quê? Para sermos mais rápidos”, relata Aguinaldo.
“Outra coisa, o preço da ação, para economizar tempo, nós só cantávamos os centavos. Porque a dezena estava no painel. Então, Petrobras estava a 10,20. Você não ia falar, eu compro Petrobras a 10,20. Eu vendo Petrobras a 10,30. Não, isso é tempo. Então: compro a 10, vendo 50, a 20”, explica.
E se alguém coloca em dúvida a negociação fechada? O ex-operador lembra que era tudo gravado em vídeo. Ou seja, já havia uma espécie de VAR. “Você não podia falar que eu não tinha comprado ou não tinha vendido. Caso houvesse algum problema nesse sentido, nós íamos no diretor de empregão. Aí, nós íamos no segundo andar, que tinha uma sala. Ele retrocedia a filmagem e pegava lá o correto”, relembra.
O local também era usado para observar se alguém passasse do ponto, fisicamente ou em ofensas, nas naturais discussões do pregão.
Mas, no geral, havia mais camaradagem do que confusão. Quem acompanhava o noticiário pela TV sabia que era muito comum a chuva de papel picado nos escritórios do entorno das Bolsas no último pregão do ano – a festa começava lá dentro mesmo, com as boletas se transformando em confete.
Os operadores também chegaram a ter um bloco de carnaval nos anos 1990 – o Valores do Samba. Em 2007, quando a escola de samba Perola Negra homenageou na avenida o tema do comércio, um carro alegórico da Bovespa que simulou um pregão, com operadores reais – Aguinaldo foi um deles.
Evolução
As mudanças no espaço e na forma de negociar ações, na verdade, fazem da evolução do mercado monetário e da economia. O próprio pregão viva-voz já existia na Bolsa de Amsterdã desde 1530, onde se apregoava como nas feiras medievais.
As bolsas de ações e mercadorias brasileiras tiveram vários endereços no Centro de São Paulo antes de se estabelecerem em seus endereços mais conhecidos.
O jeito de negociar também mudou muito. Na Bovespa, havia nos primórdios a “corbeille”, um móvel circular em torno do qual se reuniam as corretoras oficiais, com o diretor do pregão ao centro. A ordens de compra e venda eram chamadas por ordem alfabética, num ambiente bem cordial em comparação com o que viria a ser.
Foi feita uma tentativa de formatar o ambiente de outra maneira, com a criação do “avião”, uma mesa que se abria como duas asas. Mas a distância das pontas em relação ao centro do pregão gerou queixas e o padrão circular retornou. Aí, já copiando o modelo “pits”, adotado nas bolsas americanas.
Na década de 1990, os postos de negociação passaram a ser indicados por círculos demarcados no chão.
No auge das Bolsas, as maiores rodas de negociação da Bovespa eram de papéis como Telebrás, Petrobras, Vale e Paranapanema. Na BM&F, as que dominavam eram as rodas de dólar, juros e índices.
Em maio de 2008, os acionistas da Bovespa e da BM&F aprovam a fusão das duas firmas, criando a BM&FBOVESPA. Com a incorporação da Cetip em 2017, surgiu a B3.
Agilidade e transparência
Ao longo de todo esse período, a tecnologia também foi sendo introduzida no mercado monetário, primeiro para um processamento mais ágil das ordens de compra e venda e nos sistemas de negociação. Nos anos 1990, as negociações em ambiente virtual foram iniciadas – no final da década, já se previa que o pegão viva-voz estaria com os dias contados. Isso aconteceu gradualmente nos mercados globais.
O que toda digitalização representou para o mercado. A B3 destaca os ganhos em escala e em transparência. Nos melhores dias do pregão viva-voz, por exemplo, era possível alcançar 25 e 30 mil negócios executados, enquanto o recorde do modelo atual é de 18 milhões de operações em um dia – alcançado no período da pandemia. A média diária hoje é de 10 milhões de negócios por dia.
Também comparando com o modelo antigo, se antes um operadora se entendia com o outro apregoando ou por meio de sinais até o famoso “tchado”, hoje, a plataforma de negociação faz isso em média em 300 microssegundos. E sem necessidade de VAR: o sistema garante que a oferta que entrou primeiro vai ser a primeira atendida.
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Autor: Roberto de Lira