Seca extrema e calor intenso reescrevem o calendário do cacau na Amazônia


O que deveria ser um período de colheita abundante em março se transformou em uma lição dolorosa sobre como as mudanças climáticas estão reescrevendo o calendário agrícola da Amazônia. Na região do Xingu, no Pará, produtores de cacau vivenciam em tempo real uma transformação que ameaça tradições centenárias de cultivo.
A seca extrema de 2024 foi apenas o mais recente de uma série de eventos climáticos que vêm alterando profundamente a vida na região. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) declarou situação crítica de escassez hídrica nos rios Xingu e Iriri. O que normalmente seria uma seca de seis meses, de junho a novembro, se estendeu muito além do esperado, deixando comunidades inteiras isoladas.
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O novo calendário climático
Para os produtores de cacau, essa mudança nos padrões climáticos representa muito mais do que um inconveniente sazonal.
O cacaueiro, planta originária da própria Amazônia, evoluiu para prosperar em condições específicas: calor moderado, alta umidade e chuvas regulares. Na região de São Félix do Xingu, o padrão histórico indica uma estação chuvosa de 7,2 meses, de outubro a maio, com pico de precipitação em março. Mas esse calendário natural, que orientou gerações de agricultores, está se tornando cada vez mais imprevisível.
“O cacau é sensível demais às mudanças”, explica Robson Brogni, da Ascurra, cujos chocolates conquistaram múltiplos prêmios em 2025. “Quando o padrão de chuva muda, quando as temperaturas sobem além do normal, a planta sente imediatamente. E nós sentimos no bolso.”
As temperaturas em Altamira, que historicamente variavam entre 20°C e 36°C, agora frequentemente ultrapassam os 39°C durante os picos de calor entre agosto e outubro. A estação seca, que deveria durar 4,8 meses, tem se prolongado, deixando o solo ressecado por períodos cada vez maiores.
Projeções alarmantes
Os dados científicos confirmam as preocupações dos produtores. Um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), de 2022, projeta que as mudanças climáticas podem reduzir entre 37% e 73% das áreas adequadas para o cultivo de cacau na Amazônia até 2050, dependendo do cenário de aquecimento global. A redução da precipitação e o aumento da temperatura são os principais vilões dessa transformação, criando condições cada vez mais áridas em uma região que sempre dependeu da abundância hídrica.
Essa nova realidade climática está forçando uma revolução silenciosa na forma como o cacau é cultivado no Xingu. Famílias que por gerações seguiram o mesmo calendário agrícola agora precisam adaptar suas práticas quase ano a ano. O verão, que antes se estendia até dezembro com safra até agosto, deu lugar a um ciclo atrasado, com colheita prevista de março a agosto.
Impactos
O desafio é particularmente complexo porque o cacau do Xingu não é apenas uma commodity – é um produto de alta qualidade, reconhecido internacionalmente por suas características únicas. As amêndoas produzidas na Gleba Assurini apresentam sabor intenso, alto teor de manteiga e amargor equilibrado, qualidades que dependem diretamente das condições climáticas específicas da região.
A pressão sobre os produtores é intensificada pelo fato de que a região do Xingu representa 75,86% de toda a produção paraense, que, por sua vez, responde por mais da metade da produção nacional. O Pará alcançou uma produtividade média de 946 kg por hectare em 2024, quase quatro vezes superior à da Bahia, que registrou 250 kg por hectare, segundo dados apresentados por Marcos Lessa, CEO e criador do Chocolat Festival Xingu, que anualmente reúne mais de 220 expositores em Altamira.
Os impactos vão além da produção agrícola. Na região da Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio, os ribeirinhos relatam que áreas que antes não pegavam fogo registraram incêndios em 2024. O rio, principal via de transporte e comunicação para essas comunidades, teve seu nível drasticamente reduzido, isolando famílias e dificultando o escoamento da produção.
Reflexo global
A situação no Xingu reflete um padrão mais amplo que está afetando toda a cadeia global do cacau. Dados da UNCTAD mostram que o preço do cacau subiu 136% entre julho de 2022 e fevereiro de 2024, reflexo direto da escassez causada por eventos climáticos extremos.
Na África Ocidental, onde estão localizados cerca de 70% dos cultivos mundiais, a combinação entre chuvas irregulares, aumento de temperatura e novos padrões de umidade está ameaçando a produtividade de regiões inteiras.
Estudos mostram que o desmatamento da região do Rio Xingu pode reduzir em 7% a precipitação média anual histórica do estado do Mato Grosso, demonstrando como a destruição da floresta em uma região pode afetar o clima de áreas distantes. Para os produtores de cacau, isso significa que a preservação da floresta não é apenas uma questão ambiental, mas uma necessidade econômica direta.
Estratégias de adaptação
Diante desses desafios, produtores estão experimentando variedades de cacau mais resistentes ao calor e à seca, implementando sistemas de irrigação e explorando técnicas agroflorestais que ajudam a manter a umidade do solo. O sistema agroflorestal não apenas contribui para a conservação da umidade do solo e protege as plantas do calor excessivo, mas também oferece fontes alternativas de renda por meio de outras culturas e produtos florestais.
“Aprendemos que não podemos mais depender apenas do cacau”, explica Robson Brogni. “Precisamos diversificar, criar sistemas que sejam mais resistentes às mudanças.”
Organizações internacionais como a SWISSCO alertam que a adaptação às mudanças climáticas é um desafio inadiável para todo o setor cacaueiro. Temperaturas extremas, pragas, chuvas irregulares e estações secas prolongadas já estão afetando tanto o volume quanto a qualidade da produção em escala global.
Para 2025, a expectativa é que o Brasil produza cerca de 300 mil toneladas de cacau, com a região Norte mantendo a liderança e representando 56,4% da produção nacional, segundo Lessa. Mas esses números dependem diretamente da capacidade dos produtores de se adaptarem às novas condições climáticas. O Xingu, como principal região produtora, será fundamental para determinar se essas metas serão alcançadas.
A transformação climática em curso no Xingu representa um microcosmo dos desafios que a agricultura tropical enfrentará nas próximas décadas. A capacidade de adaptação demonstrada pelos produtores locais pode servir como modelo para outras regiões, mas também evidencia a urgência de ações coordenadas para mitigar os impactos das mudanças climáticas na segurança alimentar global.
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Autor: Marina Verenicz