Crise da Enel frustra estratégia de Lula e vira revés na relação entre Brasil e Itália
“O G7 foi uma oportunidade para selar uma renovada relação de confiança entre a Enel e o Brasil, como mostraram os encontros ocorridos neste sábado”. Foi assim que a Enel noticiou em seu site as reuniões ocorridas em 15 de junho na região de Puglia – o “salto da bota” no mapa da Itália.
O Brasil não faz parte do G7 – o “clube dos países ricos” é composto por Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos –, mas foi especialmente convidado pela Itália, anfitriã do encontro.
Como a Enel é uma firma de capital misto cujo controle está nas mãos do governo italiano – ou seja, funciona na prática como extensão do poder e dos interesses do Estado –, o resort Borgo Egnazia virou o lugar ideal para tentar desbotar a memória do apagão que deixou milhões de paulistas no escuro em novembro de 2023. Daquela vez, a Enel levou seis longos dias para restaurar completamente os serviços de distribuição de energia elétrica na Grande São Paulo.
Depois de se reunir com Giorgia Meloni, a primeira-ministra da Itália, o presidente Lula conversou com o CEO da Enel, Flavio Cattaneo. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, também participou do encontro.
Pelo menos ali, o corpo a corpo da estatal italiana pareceu ter funcionado: depois de prometer R$ 20 bilhões em investimentos no Brasil até 2026, último ano do governo Lula, o chefão da distribuidora de energia ouviu do presidente brasileiro que o governo federal estaria disposto a renovar os acordos de concessão, segundo noticiou a imprensa italiana. O contrato da Enel em São Paulo vai até 2028.
Além dos R$ 20 bilhões, a Enel prometeu que “não haverá mais apagão em nenhum lugar em que eles forem responsáveis pela energia”, afirmou Lula (a Enel também tem contratos de distribuição no Ceará e no Rio de Janeiro).
“Então vamos saber se vamos resolver esse problema energético, porque a gente não pode permitir que a capital mais importante do Brasil fique sem energia.”
presidente Lula
Mas a gente permitiu.
Um temporal na Grande São Paulo ocorrido na última sexta-feira (11) expôs novamente a fragilidade da rede elétrica no coração econômico do Brasil. 2,6 milhões de pessoas ficaram sem energia logo na sequência. Enquanto este texto era escrito, no começo da noite de segunda-feira (14), 400 mil imóveis ainda estavam sem luz, a Enel evitava cravar uma data para a normalização dos serviços e políticos das duas pontas do espectro ideológico estão fazendo de tudo para se afastar da Enel.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, acusou de leniência a Agência Nacional de Energia Elétrica, a quem cabe regulamentar o setor no país – a Aneel está vinculada ao governo federal por meio do Ministério de Minas e Energia. O ministro Silveira, do MME, rebateu dizendo que a diretoria atual da Aneel foi formada no governo Bolsonaro, do qual Tarcísio fez parte. Tanto um quanto o outro começaram a falar em dar fim à concessão da Enel em São Paulo.
Algumas horas antes do temporal, e de encampar a revogação do contrato, Alexandre Silveira falava em renovar a concessão da Enel. E o fez participando de um evento com políticos e empresários em Roma, organizado pelo Esfera Brasil. No mesmo painel do ministro, estava o executivo da Enel Alberto de Paoli, cujo título na firma é de “diretor do resto do mundo” – sim, o nome do cargo é esse mesmo.
Mas a revogação da concessão pode acontecer de fato?
Revogando uma concessão
Dar fim a uma concessão não é algo trivial. A Aneel já intimou a Enel a prestar esclarecimentos e ameaçou abrir um processo de recomendação da caducidade junto ao Ministério de Minas e Energia. O MME deu nesta sexta-feira um prazo de três dias para que a Enel restaure a energia, mas não disse o que vai acontecer se houver descumprimento.
Nunca houve no Brasil um processo que tenha levado à caducidade de um contrato de distribuição de energia, que precisaria ser aberto pela Aneel e, para ser efetivo, teria de ser assinado pelo ministério.
Mas o caminho para chegar provavelmente seria tortuoso. O processo de caducidade precisa ser bem fundamentado tecnicamente, afinal o objetivo é atestar se a concessionária de fato atendeu ou não os requisitos do contrato de concessão. Também há outras punições possíveis, mais leves, como multas.
E tudo pode ser judicializado – até as multas. Por conta do apagão de novembro de 2023, a Aneel aplicou duas penalidades à Enel que somam R$ 260 milhões. Nada foi pago, porque as multas foram suspensas pela Justiça.
Passado complicado
Prova de que dar fim a uma concessão ainda em andamento não é das coisas mais fáceis é o histórico da própria Enel no Estado de Goiás.
A distribuidora foi praticamente enxotada pelo governador Ronaldo Caiado, que entre 2018 e 2022 conviveu com sucessivas crises no fornecimento de energia. Apagões geraram prejuízos a produtores rurais e geraram revolta. Em 2021, produtores despejaram leite estragado em frente à unidade da Enel em Palmeira de Goiás como protesto pelas quedas de energia que impediam a necessária refrigeração do leite.
Sob pressão, a Enel vendeu por R$ 1,6 bilhão a unidade goiana, que em janeiro de 2023 passou a ter a brasileira Equatorial como concessionária.
O desfecho foi comemorado por Caiado, mas a nova distribuidora ficou em último lugar no ranking de serviços prestados ao consumidor em 2023 entre as concessionárias de grande porte que atuam no Brasil. A lista é divulgada anualmente pela Aneel e leva em consideração a duração e a frequência de interrupções da energia elétrica – a Enel-SP está em 21º lugar na lista, que tem 29 posições.
A Enel
Com quase US$ 80 bilhões em valor de mercado, a Enel é a segunda firma mais valiosa da Itália. Só está atrás da Ferrari, que vale US$ 5 bilhões a mais. E está presente em 28 países, de todos os continentes.
A firma foi fundada em 1962 pelo governo italiano como fruto de um projeto de unificação de toda a estrutura elétrica do país, juntando sob uma só entidade a geração, a transmissão e a distribuição de energia.
Embora seja hoje uma companhia de capital aberto, o Ministério da Economia da Itália tem 23,6% das ações da Enel e controla a companhia. É uma espécie de Petrobras deles. A petroleira vale US$ 92 bilhões, um patamar parecido com o da italiana, e tem 36% das suas ações nas mãos do governo brasileiro.
Com a crise de imagem no Brasil, mesmo que não haja a caducidade da concessão em São Paulo, a renovação do contrato, que se encerra em 2028, está sob risco. E o governo italiano pode usar novamente seu peso geopolítico para tentar ajudar a firma.
A Itália tem sido ativa na longa disputa judicial que envolve a firma ítalo-argentina Ternium e a brasileira CSN em relação à Usiminas, uma briga que já dura mais de 10 anos e hoje envolve mais de R$ 5 bilhões em multas e em honorários advocatícios.
Na semana passada, o vice-primeiro ministro da Itália, Antonio Tajani, se reuniu com o ministro-chefe da Casa Civil Rui Costa para falar do imbróglio jurídico, que agora está com o Supremo Tribunal Federal (STF).
O que achou dessa notícia? Deixe um comentário abaixo e/ou compartilhe em suas redes sociais. Assim deixaremos mais pessoas por dentro do mundo das finanças, economia e investimentos!
Esta notícia foi originalmente publicada em:
Fonte original
Autor: Greg Prudenciano