267 mil pessoas poderiam ser taxadas no País com imposto sobre super-ricos; tributo sobre fortunas sofre revés
Da janela de sua casa em Paraisópolis, o garçom Lucas Mendes, de 30 anos, contempla uma visão abrangente da desigualdade em São Paulo. Seu olhar começa pelas telhas deterioradas das casas da favela, com fios de eletricidade irregulares e pequenas caixas d’água amontoadas. A paisagem se estende sobre as ruas estreitas até atingir o horizonte do Morumbi, onde se erguem mansões milionárias e condomínios de luxo, simbolizando uma vida bem diferente do seu cotidiano.
A partir dali, o olhar se desloca ainda mais, atravessando as áreas arborizadas e os campos de golfe, que contrastam com a realidade da comunidade que ele conhece desde que nasceu. Os dois lugares são separados por um muro – entre um e outro ponto de cada bairro, a diferença dos ganhos médios dos que têm casa ali é colossal: a renda média de quem mora no Morumbi é de R$ 13.802. Em Paraisópolis, a cifra cai para R$ 3.004, segundo levantamento da Nós Pesquisa. Mendes, no entanto, sobrevive com um salário de R$ 2.200.
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Essa diferença não apenas destaca a desigualdade econômica, mas também ilustra as oportunidades limitadas enfrentadas pelos residentes de comunidades como Paraisópolis, segunda maior favela da Capital paulista, ficando atrás apenas de Heliópolis. A taxação dos super-ricos e de grandes fortunas surge nesse contexto, com especialistas sugerindo que uma política fiscal progressiva poderia ajudar a redistribuir a riqueza e financiar serviços públicos essenciais.
A proposta de taxar os bilionários com um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza, apresentada no G20 (grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia) por Gabriel Zucman, economista da Escola de Economia de Paris, poderia arrecadar entre US$ 200 bilhões e US$ 250 bilhões por ano em escala global. No Brasil, havia até a noite de terça-feira (30) um projeto na mesma linha, mas que previa a taxação de para quem tiver patrimônio acima de R$ 10 milhões. Apresentada pelo PSOL sob forma de destaque no segundo projeto de regulamentação da reforma tributária – cujo texto-base foi aprovado em agosto –, a proposta foi rejeitada ontem na Câmara.
A estratégia de aumentar os impostos sobre fortunas busca isentar do Imposto de Renda (IR) aqueles que ganham até R$ 5 mil mensais – promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à época da corrida eleitoral de 2022. A medida está fundamentada em estudos recentes que indicam que a implementação de impostos sobre grandes fortunas pode ser eficaz para promover um desenvolvimento mais equitativo. Com isso, seria possível investir em infraestrutura e programas sociais que beneficiam diretamente a população de renda mais baixa.
Concentração de renda no Brasil
A discussão sobre a taxação dos super-ricos e de grandes fortunas, segundo especialistas, não ocorre apenas no âmbito da ordem da justiça social, mas também visa melhorar a qualidade de vida nas áreas mais vulneráveis do País. Entretanto, ela levanta uma questão central: como isso refletiria na concentração de renda no País?
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De acordo com o Relatório Global Wealth 2024 do banco UBS, um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza dos super-ricos no Brasil afetaria cerca de 267 mil pessoas, que correspondem aos 0,2% mais ricos da população. Essas pessoas possuem patrimônios superiores a R$ 13 milhões e têm uma renda média mensal de aproximadamente R$ 218 mil, segundo especialistas. Se viesse a valer, o imposto arrecadaria entre R$ 40 bilhões e R$ 160 bilhões por ano no País.
O economista e CEO do Grupo Studio, José Carlos Monteiro, diz que os setores que concentram as maiores fortunas dos super-ricos brasileiros incluem o agronegócio, o monetário e o ramo de tecnologia. O agronegócio, focado em exportações de commodities como soja e carne, continua a ser o setor com maior número de bilionários. O setor monetário, com fortunas ligadas a bancos e investimentos, também se destaca. A tecnologia, embora ainda menor na comparação, vem crescendo rapidamente no País, refletindo tendências globais de inovação.
“A proposta afetaria o Brasil de forma significativa, pois criaria um padrão internacional que limitaria a movimentação de capitais para paraísos fiscais, minimizando a evasão fiscal entre os super-ricos brasileiros. Ao estabelecer um imposto mínimo global de 2%, a proposta dificultaria que bilionários brasileiros transferissem suas fortunas para outros países para evitar tributos, permitindo maior arrecadação no Brasil”, analisa Monteiro.
Taxação de super-ricos: eficácia e empecilhos
Em contrapartida, Monteiro diz que a taxação dos bilionários no Brasil, caso ela fosse exclusiva do País e não aplicada globalmente, poderia ser menos eficaz do que em outras nações devido à elevada mobilidade de capital e à fragilidade das estruturas de fiscalização nacionais. “Bilionários no Brasil têm mais facilidade para transferir ativos para o exterior ou aproveitar lacunas no sistema tributário. Além disso, a falta de uma cooperação internacional sólida aumenta o risco de evasão fiscal. Em comparação com países com sistemas fiscais mais consolidados e efetivos, o Brasil enfrenta maiores desafios para garantir a efetividade da taxação”, explica.
Para ele, politicamente, em termos de desafio, a ideia encontra resistência de grupos da elite e lobbies que apoiam a manutenção das regras fiscais atuais, além de uma divisão entre a opinião pública sobre a taxação de grandes fortunas. Economicamente, a mobilidade do capital dos bilionários cria a possibilidade de evasão de tributos, com fortunas sendo transferidas para paraísos fiscais, o que pode limitar a eficácia da arrecadação. Assim, para o economista, a medida funcionaria se aplicada em escala global e não exclusivamente em território brasileiro.
Além disso, explica Monteiro, é necessária uma reforma na infraestrutura de fiscalização tributária para garantir que o imposto seja implementado de forma justa e eficiente. “Esses grupos argumentam que esse tipo de medida poderia desencorajar investimentos e criar insegurança jurídica. Muitos defendem que o foco deveria estar em políticas de crescimento econômico e simplificação tributária ao invés de aumentar a carga sobre as grandes fortunas, o que poderia afetar a competitividade das firmas”, afirma.
O sócio na área Tributária da TozziniFreire Advogados, Ricardo Maito, lembra que a Constituição Federal do Brasil já autoriza a União a instituir um imposto sobre grandes fortunas, mediante a edição de lei complementar. Em tese, portanto, a taxação poderia ser criada sem grandes entraves jurídicos.
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O problema é que, segundo ele, em países que implementaram impostos sobre grandes fortunas surgiram desafios na fiscalização e na definição da base de cálculo. Um dos principais entraves, diz Maito, é o movimento de evasão fiscal, com a fuga de cidadãos de alta renda para locais com regras tributárias mais favoráveis. Tal migração de capital e de pessoas pode reduzir significativamente a eficácia do imposto, além de criar novos desafios para a fiscalização tributária, que já precisaria de reformas estruturais para garantir uma cobrança justa e eficiente. “O grande desafio seria aferir o valor real desses ativos: caso se pretenda tributar o patrimônio em função do seu valor de mercado, o Fisco teria que dispor de mecanismos para aferir esse valor, o que, além de operacionalmente custoso, poderia gerar grandes litígios”, observa o tributarista.
A rejeição ocorrida ontem na Câmara dos Deputados do destaque da reforma tributária de taxar fortunas acima de R$ 10 milhões diminui drasticamente a possibilidade de medidas similares, ao menos no curto prazo. É o que diz o sócio fundador do escritório Meirelles Costa Advogados, Morvan Meirelles Costa Junior. “A proposta morre aqui. Ela poderia voltar se o Senado a apresentasse sob outra justificativa. A legislação não permite a apresentação de uma proposta ipsis litteris (nos mesmos termos)”, explica.
Quanto vale o patrimônio dos super-ricos?
Hugo Menezes, sócio do escritório HMGN Advogados, acredita que a questão importante a ser debatida é a forma de fiscalização e quem, de fato, seria considerado super-rico. A avaliação do patrimônio dos super-ricos, especialmente em imóveis, seria complexa, já que, no Brasil, a legislação atual prevê que os ativos sejam declarados pelo valor de custo, não pelo valor de mercado. Isso limita a clareza sobre o verdadeiro patrimônio dos contribuintes.
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Outro ponto, observa ele, é se o patrimônio deveria ser considerado em termos de dólar, uma vez que o mercado imobiliário de luxo em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro é sensível a flutuações da moeda americana.
Onde os impostos para super-ricos deu errado
A França serve como um exemplo sobre como a implementação de um imposto sobre grandes fortunas pode não funcionar conforme o esperado, analisa o sócio na área Tributária da TozziniFreire Advogados, Ricardo Maito. O país implementou o tributo, mas observou uma migração de cidadãos de alta renda para outros países europeus, levando o governo a revogar a medida.
Maito também aponta o Uruguai como um caso similar, que criou um regime temporário de isenção de imposto de renda para atrair novos residentes. Isso resultou na migração de muitos milionários brasileiros, que continuam a fazer negócios no Brasil. “Isso não necessariamente afasta a realização de investimentos no Brasil. Afinal, esse tributo, caso criado, atingiria indivíduos com residência fiscal no Brasil, e não o patrimônio de investidores estrangeiros”, diz.
O plano B para o imposto sobre grandes fortunas
Especialistas ouvidos pelo E-Investidor estimam que até o final de 2024 o Brasil poderia perder cerca de 800 milionários, em um movimento que tende a se intensificar caso a criação do imposto sobre grandes fortunas avançasse. A previsão é do consultor jurídico Hugo Menezes e está relacionada ao Projeto de Lei 108, parte da regulamentação da reforma tributária, cujo destaque foi rejeitado pela Câmara nesta terça-feira.
De acordo com ele, o êxodo na alta renda já tem sido observado em escritórios especializados, que relatam a fuga de grandes empresários. Entre os destinos mais procurados por esses milionários estão países com regimes fiscais mais favoráveis, como Suíça, Bahamas e Itália, além de Portugal, que tem sido um dos principais destinos nos últimos dez anos.
Uma alternativa à taxação sobre grandes fortunas, que já encontra maior maturidade no debate fiscal brasileiro, seria a tributação de dividendos e dos juros sobre capital próprio (JCP), defende o advogado Menezes. Atualmente, o Brasil está entre os poucos países que não tributam dividendos, o que gera um debate sobre justiça fiscal e progressividade.
Segundo Menezes, a tributação de dividendos permitiria uma redistribuição mais justa da carga tributária, especialmente se combinada com mecanismos de compensação, como a redução de impostos sobre as firmas que distribuem esses proventos. Esse equilíbrio poderia evitar um impacto excessivo sobre a atividade econômica da iniciativa privada, ao mesmo tempo em que garantiria uma maior contribuição das pessoas físicas que recebem esses lucros.
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Além disso, a ideia de ajustar a tributação na operação da firma que distribui os dividendos também pode reduzir a resistência a essas propostas. Diferente da taxação sobre grandes fortunas, que enfrenta desafios tanto na identificação do patrimônio quanto na mobilidade de capitais, a tributação dos dividendos tem uma estrutura mais consolidada e poderia ser aplicada de maneira mais eficiente, sem gerar fuga de capital para paraísos fiscais em larga escala. “Acredito que esse caminho poderá ser utilizado como plano B, caso as novas taxações não sejam aprovadas”, diz Menezes.
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Autor: Murilo Melo