Big Bang dos carros elétricos cria um buraco negro no mercado de seminovos
Dá para dizer uma mentira contando só verdades, já dizia aquele comercial célebre da W/Brasil. De alguma forma, isso se aplica ao assunto desta reportagem: a desvalorização dos carros elétricos no mercado de usados.
Vamos para uma dessas verdades. Em 2021, um Nissan Leaf zero custava R$ 278 mil. Tratava-se de um hatch elétrico discreto, não muito maior que um Chevrolet Onix; e custava, na época, o mesmo tanto que um bom Mercedes com motor a combustão, o C200.
Hoje, um Leaf 2021 custa R$ 121,7 mil pela tabela Fipe. Quem comprou um lá atrás e quiser vender agora vai amargar uma perda de 56% (em valor nominal, sem contar a inflação).
Quem comprou um C200 não tem esse problema. Pela Fipe, um modelo 2021 sai por R$ 283 mil hoje – 2% de ganho nominal. Nada mau. Tem fundo que rendeu menos do que isso de 2021 para cá – sem incluir no pacote o usufruto de um Mercedes por três anos.
Outro caso clássico de desvalorização: a do Audi e-tron. Em 2021, a variante “Performance Black” dessa nave espacial custava R$ 615 mil. Mais do que um nada básico Porsche Boxter GTS 4.0 (R$ 609 mil na época).
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Agora o e-tron de três anos atrás vale bem menos: R$ 412 mil pela Fipe. O Porsche? R$ 700 mil. Ou seja: quem levou um e-tron e está vendendo agora perda de 33% no nominal. E quem levou um Boxter, a combustão, ganha 15%.
Ok. Mercedes e Porsche nem sempre são boas referências – o mercado de luxo tem suas esquizofrenias. Então vamos comparar aqui com algo mais frugal: o T-Cross Highline.
Em 2021, esse VW 1.3 turbo custava R$ 137 mil (bons tempos…). Hoje, o usado de três anos atrás sai por R$ 113 mil. Perda de 17%. Bem menor que os -33 do e-tron ou os -56% do Leaf.
Caso encerrado. É fato que elétricos com alguns anos de uso estão perdendo mais valor do que carros a combustão. Mas essa é só uma parte da história, porque um fato essencial ainda não entrou em cena aqui.
Vamos a ele.
Dolphin: desvalorização suave
Carro elétrico é um personagem que só ganhou corpo no cenário automotivo nacional agora, em 2024 mesmo – neste ano, até outubro, as vendas foram 420% maiores do que no mesmo período do ano passado, o que configura um Big Bang.
O criador dessa grande explosão é, em grande parte, a BYD. 60% dos elétricos vendidos no Brasil são ou Dolphin Mini (17,1 mil entre janeiro e outubro) ou Dolphin ‘normal’ (13,1 mil), os best sellers da marca chinesa. Vale também mencionar o Ora 03, da rival GWM (2,9 mil), cujas vendas têm engrenado também.
Esses três modelos custam na casa dos cento e tantos mil reais – pouco para os padrões de 2024 – e trazem na manga uma vantagem enorme em relação aos elétricos mais antigos: autonomia de gente grande.
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Vamos voltar ao Nissan Leaf. A versão 2021 dele, sobre a qual falamos aqui, conseguia rodar até 192 km com uma carga – pela aferição do Inmetro. Ele custava R$ 278 mil há três anos, certo? Bom, contando a inflação, isso dá R$ 322 mil em dinheiro de hoje.
O Dolphin Mini custa uma fração disso, R$ 115 mil. E a autonomia é quase 50% maior: 280 km. O Ora 03 GT e o Dolphin Plus, as versões mais caras desses dois elétricos, fazem 320 km e 330 km. Tanto um como o outro custam um pouco menos de R$ 190 mil.
Com tanta autonomia a preços bem mais baixos que o de poucos anos atrás, é óbvio que o preço do Leaf iria despencar no mercado de usados.
E o do e-tron também. Sabe qual era a autonomia dele em 2021? 246 km – menor que a de um Dolphin Mini. Aí não há a quem apelar. Aconteceu uma evolução fora de série, que tornou obsoletos carros ainda jovens o bastante para serem chamados de seminovos.
Já entre os seminovos desta geração, a desvalorização é menor que a dos modelos a combustão. A do mais vendido, o Dolphin Mini, ainda não dá para auferir, já que ele não tem um ano de mercado. A do Ora 03 também não, pelo mesmo motivo.
Mas o Dolphin normal está entre nós a mais tempo. Então pode ser nossa cobaia. Um básico de 2023, com um ano de uso, custa R$ 129 mil na tabela Fipe. 13,8% a menos na comparação com o preço do ano passado (R$ 149 mil).
Para dar uma ideia: a desvalorização do Hyundai Creta, o carro mais vendido do país no varejo, foi de 16% nesse mesmo caso. A do Jeep Renegade, outro queridão do grande público, 15,6%.
Ok. Aí entra outra questão. Um fator que colabora para a desvalorização dos elétricos mais antigos é a desconfiança em relação à durabilidade da bateria. Em um ano, isso não conta. Como as montadoras dão até oito anos de garantia nela, sabe-se que em 12 ou 24 meses não haverá uma grande diferença.
Mas quando passa disso, a preocupação entra em cena. Um celular vira tijolo em poucos anos, e ninguém quer que isso aconteça com um carro. Só que as baterias duram mais do que o senso comum imagina.
82,5% de bateria em 10 anos
Para entender melhor essa parte, vale olhar para o caso do Model S, o primeiro sedan da Tesla. Ele é um dos poucos modelos no mercado global com mais de 10 anos nas costas; e que sempre teve uma autonomia bacana, de 400 km.
A NimbleFins, uma seguradora btritânica, fez um estudo com base em 625 desses Teslas, a partir de informações enviadas pelos donos entre 2013 e 2022.
Conclusão: os modelos com dez anos de idade retêm, em média, 82,5% da capacidade original da bateria. Isso significa que os Model S 2013 com 400 km de autonomia chegaram a 2023 aguentando 330 km, em média.
Seu celular certamente não faria isso. Em 10 anos, ele vira telefone fixo – só funciona ligado na tomada o dia todo.
Tudo mentira lá da seguradora britânica, então? Não. Porque estamos falando de animais distintos. “Todas as baterias de carros eletrificados têm sistemas de refrigeração, que aumentam a vida útil; ao contrário dos celulares. É por isso que a comparação não é válida”, disse a GWM Brasil em nota para o InvestNews. Essa é a diferença.
Ok. Mas e depois de dez anos? O carro vira abóbora?
Até vira. Mas ainda dá para fazer um purê com essa abóbora. Outro estudo, agora da canadense Geotab, uma companhia de gerenciamento digital de frotas, mostra que os elétricos de hoje têm o potencial de chegar aos 20 anos com a bateria em 64% da capacidade, em média – um carro com autonomia original de 400 km, então, aguentaria 256 km; um de 300 km, 192 km.
Dá bem para usar na cidade ainda. Mas claro que aí o valor de revenda implode. Só que no mundo dos carros a combustão é a mesma coisa. Um Toyota Corolla XEI 2004 (para mencionar um modelo reconhecidamente durável) custa R$ 30 mil na Fipe – 80% menos que um zero, de R$ 160 mil. E a questão aí não é só bateria ou motor, claro; cada um dos componentes do carro vai se despedindo com o tempo. A morte chega para todos.
Mas nada do que falamos aqui justifica outro fato: o de que o preço dos elétricos usados está caindo com força no exterior, mesmo entre aqueles que sempre tiveram boa autonomia (os Teslas). A resposta para esse paradoxo está logo abaixo.
22% de progresso em cinco aos
O que pegou lá fora foi uma mudança no modelo de negócios da Tesla – que domina o mercado nos EUA e na Europa. Em 2023, ela reduziu o preço de seus carros em até 30%. Era uma reviravolta. Em vez de fazer margem, cobrando o máximo possível em relativamente poucos carros –, a Tesla decidiu operar no volume – ganhando menos por veículo, mas vendendo mais unidades. É do jogo. E as outras montadoras seguiram os passos de Elon Musk, cortando preços.
Só que isso fez desmoronar o preço dos elétricos usados, já que o valor dos zero km é a grande referência aí.
Um Model S 85D custava US$ 89,4 mil em 2015. Hoje, o preço médio no mercado de usados lá é de US$ 22 mil, de acordo com o Cars.com. Dá 75% de desvalorização.
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Sim, nos EUA os usados desvalorizam mais do que aqui. O salário médio por lá equivale a R$ 28 mil por mês, contra R$ 3,5 mil aqui. Então sobra mais para comprar carro zero. Sobra tanto que o veículo mais vendido por lá é uma picape de grande porte, a F-150.
Mesmo assim, 75% de perda é uma bomba. Uma F-150 intermediária custava US$ 39 mil por lá em 2015. A usada desse mesmo ano sai por US$ 20,3 mil hoje. Perda de apenas 48%.
Só que a F-150 não passou por cortes no preço da zero. Para comparar direito, então, só tem uma forma: bater o valor do carro usado com o de um novo, de 2024.
Um Model S novo custa US$ 76,7 mil. Confrontando com o preço do usado de 2015, temos aí uma desvalorização menos grave de 71%.
Fazendo a mesma conta para a F-150, cujo modelo zero está em US$ 63,2, temos aí uma queda de… 68%.
É isso. Tirando da equação a baixa forçada no preço do zero, a desvalorização de um Tesla com nove anos de uso é parecida com a do carro mais vendido dos Estados Unidos.
Isso mostra que o fator “medo da durabilidade da bateria” já é, no mínimo, menos relevante no mercado americano. De outra forma, a diferença entre ambos os usados em relação aos seus pares zero km seria bem maior.
Mas tem outra. A Geotab, aquela firma canadense, concluiu que a autonomia média dos elétricos está crescendo paulatinamente. Num outro estudo deles, de 2019, descobriram que as baterias perdiam 2,3% em relação à autonomia original a cada ano. No segundo estudo, que citamos lá atrás, constataram que essa taxa média baixou para 1,8%. Temos aí, então, um progresso de 22% em cinco anos.
Legal. Mas se a evolução das baterias seguir rampante desse jeito, alguns elétricos de hoje também podem viver desvalorizações fora da curva no mercado de usados – principalmente os de autonomia menor, já que esses são os que tendem mais rápido à obsolescência.
Uma verdade não muito conveniente para quem está comprando um elétrico agora. Mas que também faz parte do jogo.
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Esta notícia foi originalmente publicada em:
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Autor: Alexandre Versignassi