China já vinha se blindando e ainda há dor pelo caminho, diz Livio Ribeiro, da FGV


A guerra comercial global em curso não tem qualquer paralelo com outros momentos históricos da economia mundial. Mais: preparada, a China parece ter garantido mais capacidade para esticar a corda do que analistas poderiam prever, após quase um ano de preparação para possíveis retaliações à imposição de tarifas americanas.
É essa a avaliação de Livio Ribeiro, pesquisador associado do FGV/Ibre e sócio da BRCG Consultoria. “Comparar [as atuais imposições de tarifas] à Covid ou à crise financeira de 2008 e 2009 é equivocado, porque são choques de natureza muito distintos. Então, esse evento é novo. Ele é muito maior do que a primeira guerra comercial. É outra coisa”, diz em entrevista ao InfoMoney.
Embora a via diplomática ainda esteja aberta, sua avaliação é a de que “ainda há dor pelo caminho”, enquanto ondas de choque se espalham pelas economias globais e a volatilidade explodiu. Já desde a madrugada desta segunda-feira (7), mercado asiáticos anotavam resultados negativos históricos em reação ao revide da China às tarifas impostas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
O principal índice de ações de Hong Kong sofreu sua maior queda desde 1997. No Japão, a operadora da bolsa chegou a acionar um circuit breaker (mecanismo de interrupção das negociações diante de grandes volatilidades) enquanto a Nikkei 225 caia a mais de 8%.
Sobre esse impacto inicial, Ribeiro pondera que um movimento de preço de curto prazo tipicamente não quer dizer muita coisa em termos de médio e longo prazo. “Mercados são voláteis, operam sob informação imperfeita ou incompleta e, às vezes, as pessoas andam em efeito manada, acabam se tocando de uma agenda óbvia e fazendo um grande movimento, uma grande correção em função de informações que, na verdade, já eram disponíveis.”
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Para ele, o que já estava claro era a preparação da China para se blindar a uma “grande onda externa” a partir de medidas de estímulos fiscal, monetário, creditício e parafiscal.
O País prevê um crescimento de 5% para o seu Produto Interno Bruto (PIB), cenário que se tornou mais provável do que no ano passado. Em uma publicação feita no Blog do Ibre na manhã de segunda-feira (7), Ribeiro avalia que embora a China tenha reduzido sua meta de inflação para 2% ao ano em 2025, o número ainda parece elevado para a realidade do país que enfrenta um cenário de deflação, carência de demanda e sinais de armadilha de liquidez.
O país ainda expandiu sua meta fiscal em 1 ponto percentual, o maior ajuste depois da pandemia, deixando mais clara a disposição do governo em aumentar os gastos durante 2025, avalia o pesquisador.
Esta preparação desde meados de 2024 garantiu à China capacidade de responder às tarifas adicionais de 34% anunciadas por Trump contra país asiático na última quarta-feira (2). “A tarifa recíproca, vamos dar o tom certo, foi calculada num verso de guardanapo de papel”, diz Ribeiro. “Definitivamente não tem critério.”
Agora, com as cordas esticadas, a expectativa chinesa é que a disputa comercial tenha impactos inflacionários na economia doméstica americana e desperte uma oposição interna. “A China sabe que o choque tarifário para a economia americana é algo desastroso em termos de inflação. E a aceleração do nível de preços foi basicamente um dos principais fatores, se não o principal fator, que levou a administração [do ex-presidente americano Joe] Biden a perder a eleição”, diz.
Leia a entrevista completa abaixo.
InfoMoney: O movimento dos mercados asiáticos na manhã de segunda-feira em função dos efeitos das tarifas de Trump é mais uma correção ou deve repercutir em longo prazo?
Livio Ribeiro: Primeiro, temos que dar alguns alguns passos para trás. Movimento de preço de curto prazo tipicamente não quer dizer muita coisa em termos de médio e longo prazo. Mercados são voláteis, operam sob informação imperfeita ou incompleta e, às vezes, as pessoas andam em efeito manada. Acabam se tocando de uma agenda óbvia e fazendo um grande movimento, uma grande correção em função de informações que, na verdade, já eram disponíveis se você prestasse um pouco mais de atenção.
Pelo menos desde antes da eleição presidencial americana, a China tem se preparado para uma grande onda externa, com uma série de medidas de blindagem da economia e e de estímulos fiscal, monetário, creditício, parafiscal de forma a fazer um forro de contenção.
Quando Trump faz as primeiras rodadas de tarifas, de 10% e depois 20%, a retaliação chinesa foi mais concentrada em algumas questões específicas, ainda que centrais, não retribuindo na mesma magnitude, mas fazendo ajustes, por exemplo, na disponibilidade de terras raras, muito importante quando se pensa na indústria de eletrônicos, e colocando algumas firmas americanas numa lista negra, restringindo determinados tipos de investimentos, tanto de firmas americanas na China como de firmas chinesas nos Estados Unidos.
IM: A retaliação, então, era esperada?
LR: Como a China já vinha se posicionando antes, eu achava que era muito razoável que houvesse uma retaliação. A China não ia capitular. Obviamente, fazer a retaliação da forma como foi era uma coisa que não daria para cravar, mas a China não ia abaixar a cabeça. O que é relevante é de qual forma Europa como um todo e a China em específico, vão retribuir. E os chineses, como quando se olham os sinais de maneira organizada, já estão se organizando para lidar com isso há dez meses. Se quiser ser bem condescendente, há pelo menos uns sete, oito meses. Os músculos estão flexionados.
Primeiro, eu acho que as pessoas não olham essa história. Quem acompanha a China, quem discute a China, já está ouvindo há bastante tempo, e o mercado não. A China devolveu. Enquanto conversamos, Trump ameaça impor 50% de tarifas adicionais contra a China. Estamos no meio do que chamamos em teoria dos jogos de jogo da galinha: aquele em que dois carros aceleram em direção ao outro, forçando algum a desviar e cair numa vala. Os carros estão acelerando, vamos ver quem sobra no fim.
IM: No fim das contas, quem deve ficar mais próximo de ceder diante dessas tensões entre Estados Unidos e China?
LR: Não dá para saber, de verdade. Esse é o ponto. As pessoas tendem a achar que os Estados Unidos, por serem a maior economia, terão mais poder de barganha. Por outro lado, a China sabe que o choque tarifário para a economia americana é algo desastroso em termos de inflação. E a aceleração do nível de preços foi basicamente um dos principais fatores, se não o principal fator, que levou a administração [do ex-presidente americano Joe] Biden a perder a eleição.
Os dois lados sabem disso. Existe esse processo de esticar a corda até o limite do possível. A China, por ser um país mais fechado e por ter um espaço de manobra fiscal e monetário, pode lidar com choques maiores no curto prazo. Na verdade, o grande jogo da galinha é isso: até que ponto a China pode forçar os Estados Unidos ou a administração Trump a uma posição onde ela comece a ser amplamente contestada domesticamente? Eu acho que o cálculo chinês é esse.
IM: Qual é o limite desse espaço de manobra para a China? O Diário do Povo, principal jornal do Partido Comunista Chinês, falou que o país está preparado para fazer “esforços extraordinários” fiscais, monetários.
LR: A questão não é que eles vão fazer. Eles já fizeram. Esse é que é o grande ponto.
Eles já colocaram isso na rua e, se precisar, eles vão colocar mais. Mas isso começa de verdade no final de setembro e vai acelerando no decorrer dos últimos meses, inclusive após a eleição do Trump.
IM: Quais foram as principais medidas desde setembro?
LR: Corte de juros, capitalização de banco, ampliação de déficit fiscal, ampliação de déficit parafiscal, construção de fundos públicos para intervenção direta em determinados mercados, com destaque para o mercado imobiliário e residencial. É uma tripa de coisas.
IM: Até onde a China consegue ir?
LR: Quando se é um país com uma conta de capital fechada, com um juro baixo, com um governo que tem um nível de discricionariedade econômica gigantesco, no curto prazo o castelo não cai. Isso só vai ter efeitos a prazos mais longos, porque vai empilhar uma série de políticas que não são estruturalmente viáveis.
Um país centralizado com algum grau de liberdade no curto prazo, que vai forçar o oponente a esgarçar tanto a sua política a ponto de poder sofrer oposição interna. Na verdade, a China está jogando com a oposição interna nesse campo. Por isso eu digo que não vai terminar rápido.
IM: Quais são os potenciais efeitos de médio prazo que podem levar esse castelo a ruir?
LR: Temos discussões sobre o excesso de endividamento, diminuição da qualidade dos investimentos, de inadequação de políticas porque elas não são sustentáveis a prazos muito longos. Só que o que é médio prazo? Médio prazo não é três meses. Pode ser muito mais longo do que isso. O que a China vai fazer é puxar a corda para ver se a corda arrebenta do lado americano.
IM: Até o ano passado, analistas avaliavam que a economia chinesa já não cresceria no mesmo ritmo, uma crise imobiliária estava em curso. O que muda agora?
LR: Na verdade, tem muito mais dinheiro do governo na rua. É isso que as pessoas perderam. Estamos discutindo uma expansão fiscal e parafiscal de dois pontos percentuais esse ano, corte de juros, uma moeda que está meio de lado nos últimos seis meses, mas que deprecia em relação ao início do ano passado, criação de fundos públicos.
São milhões de discussões não somente para fazer frente a essa onda externa, mas para tentar dinamizar o consumo, que é o grande calcanhar de Aquiles da economia chinesa no momento. Eu não sei se vai dar certo no curto prazo. Tem desafios que são importantes, mas não se pode perder de vista que a China também tem margem de manobra. Se olha muito para o lado americano, esquecendo de olhar para o lado chinês. A China entra nessa briga com muito mais condições do que as pessoas, na média, percebem.
IM: Os países asiáticos em geral foram os mais tarifados por Trump. Qual será a influência das políticas econômicas chinesas para o resto do mercado asiático?
LR: É um momento catastrófico em termos de gestão de risco. Vai todo mundo sofrer. Não tem muito jeito. Também há uma outra forma mais arrojada de pensar no tema: até que ponto ter os Estados Unidos como um parceiro preferencial e estável não vai ser algo contestado pelas nações? O que tem demonstrado é uma grande instabilidade. Essa também é uma aposta chinesa, de querer vender a imagem, uma imagem difícil de vender, de que ela pode ser um parceiro mais confiável.
IM: E a China aumenta sua influência para quais regiões?
LR: A Ásia, a América Latina e a África são os quintais, diretamente. Mas isso vale para a Europa, em algum nível. Até que ponto pode existir uma coordenação no mundo não-Estados Unidos, de maneira conjunta — e isso não é cenário-base, só para deixar claro –, criar literalmente um forro de barramento contra as políticas americanas. É um cenário possível, ainda que não provável. Entramos agora em um momento de redefinição das relações de maneira ampla. Essa redefinição pode nos levar a lugar nenhum e continuarmos onde já estávamos. Mas o fato é que as coisas estão balançando.
IM: Diante desse balançar, ainda há espaço para revisão das tarifas recíprocas, para a diplomacia?
LR: Tem espaço, mas, antes de a gente chegar nesse momento, me parece ter dor pelo caminho. As ondas de choque vão se espalhar. O que é importante termos em mente é que tem uma possibilidade muito grande de mudanças, o que significa que, mais do que a direção, o que importa agora é entender que o nível de volatilidade explodiu.
IM: De uma forma similar a qual outro período?
LR: Não tem similaridade. É novo. Comparar com a Covid ou a crise financeira de 2008 e 2009 é equivocado, porque são choques de natureza muito distintos. Então, esse evento é novo. Ele é muito maior do que a primeira guerra comercial. É outra coisa.
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Autor: iurisantos