Indústria militar ucraniana se reinventa com a guerra e já põe o futuro na mira


Cerca de duas semanas antes de Vladimir Putin ordenar a maior invasão terrestre em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial, o então chefe do Estado-Maior dos EUA, Mark Milley, afirmou a parlamentares que, caso os russos entrassem na Ucrânia, Kiev cairia “em até 72 horas”. Os tanques cruzaram a fronteira no dia 24 de fevereiro de 2022, mas Putin, ao contrário do que se esperava, não chegou à capital ucraniana e hoje trava uma guerra que, segundo estimativas, matou ou feriu mais de um milhão de seus compatriotas.
Os erros e o excesso de confiança do Kremlin cobraram seu preço, e os ucranianos, em meio à escassez de armamentos, munições e apoio externo, souberam remodelar modelos de defesa herdados da União Soviética em busca de maior eficiência. A produção interna de armas convencionais deu um salto, passando de 10% para 35% do total usado no conflito, e o avanço no desenvolvimento de drones serviu para apoiar as tropas e traçar perspectivas futuras de exploração econômica de um novo setor bélico.
O primeiro sinal de alerta para uma reforma na engessada indústria de defesa ucraniana veio em 2014, quando forças separatistas apoiadas por Moscou dominaram parte do leste do país, dando início a uma guerra civil. Entre 2014 e 2021, o orçamento militar aumentou 13 vezes, e foram adotadas medidas para agilizar processos e combater a corrupção. Ao mesmo tempo, o setor privado passou a desempenhar um papel cada vez maior.
Após a invasão de 2022, o caminho para recuperar os estragos causados ao complexo industrial foi longo, mas o fluxo de dinheiro de aliados, como EUA e União Europeia, permitiu aumentar exponencialmente o orçamento para aquisições militares: em 2023, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, foram gastos US$ 30,8 bilhões (R$ 171,26 bilhões) em armas e bens de uso duplo — civil e militar —, vinte vezes mais do que em 2021.
O Instituto ainda aponta que 35% de todas as armas e equipamentos necessários para a defesa contra a Rússia são construídos na própria Ucrânia, contra 10% no início da guerra. O restante vem da Europa e, especialmente, dos EUA. Mesmo assim, o ministro das Indústrias Estratégicas, Herman Smetanin, reconhece que “nenhum país seria capaz de ser totalmente autossuficiente, dada a intensidade da guerra da Rússia contra a Ucrânia”. E a evolução do arsenal russo por vezes supera os sistemas atuais de defesa, incluindo os doados pelo Ocidente.
— Temos restrições financeiras, e a Rússia também as tem — disse ao portal Euronews. — Mas eles têm um nível e tamanho de economia diferentes. Eles podem arcar com um pouco mais do que nós.
Tempos de crise e ameaça existencial também servem como terreno fértil para novas ideias e novos paradigmas. No caso ucraniano, a mudança veio com os drones.
— A utilização dos drones pela Ucrânia é uma coisa muito ambiciosa, não é um programa pequeno — afirmou ao GLOBO Sandro Teixeira Moita, professor na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. — É uma revolução completa, uma revolução civil e militar.
Segundo dados do governo ucraniano, em 2024 foram construídos 1,5 milhão de drones de ataque, reconhecimento e destinados a outras funções, como a limpeza de campos minados, e a expectativa é de que a produção chegue a 4,5 milhões até o final do ano. Em 2023, foram 300 mil.
— Em 2022, houve a invasão em grande escala, e os militares ucranianos estavam procurando algo que pudessem usar na guerra, incluindo tecnologia comercial — afirmou ao GLOBO Kateryna Bondar, pesquisadora do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais. — Tudo começou com movimentos de voluntários, e inicialmente o governo apenas observava se os novos equipamentos seriam suficientes e capazes de substituir as munições. Foi nesse momento que as autoridades começaram a pensar em como realmente permitir a aquisição mais rápida de capacidades comerciais para as Forças Armadas.
Bondar, que trabalhou como conselheira do governo da Ucrânia, conta que a abertura a inovações e à parceria com a iniciativa privada, inicialmente centrada nas armas “convencionais”, foi ampliada para o desenvolvimento de novas tecnologias.
— O que o governo fez foi alocar, em 2023, uma reserva financeira para o Ministério da Defesa, e também alocar outra verba para uma agência diferente, com um regulamento de aquisição completamente novo, especificamente para esse dinheiro — aponta. — A Ucrânia começou a ter uma reserva para a aquisição de tecnologia comercial, basicamente sistemas não tripulados e de guerra eletrônica. Naquele momento, a situação realmente mudou.
Antes da invasão, havia apenas sete fabricantes de drones na Ucrânia, e hoje são cerca de 500, em boa parte firmas de pequeno porte, com poucos funcionários, mas com ideias que se adaptam às necessidades locais. As restrições a novos projetos com dinheiro estatal também foram praticamente eliminadas.
— Como quase todo mundo tem alguém na linha de frente que conhece, parentes, amigos ou alguém, e você pode simplesmente ligar para essa pessoa e perguntar o que precisa ou dizer algo como: “Ei, temos essa ideia e um protótipo. Você pode testá-la ou nos dizer se é válida? Vai funcionar ou não?” — diz Bondar. — Assim, os fabricantes podem ouvir em primeira mão as demandas, necessidades e requisitos.
Além de drones militares desenvolvidos pelo Estado, como o Magura v7, veículo aquático usado para abater ao menos um caça russo Sukhoi Su-30, em maio, o arsenal não tripulado ucraniano inclui produtos da iniciativa privada. Em 2022, motos aquáticas (o popular jet ski) militarizadas danificaram três navios no porto de Sebastopol, na Crimeia, e drones de fabricação chinesa Mavic, adaptados para carregar explosivos, protagonizaram centenas de ataques nos últimos três anos — em maio, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse que os chineses pararam de vender o equipamento para seu país. Os drones usados na Operação Teia de Aranha, que atacou as bases russas na semana passada, são quadricópteros do modelo Osa, da ucraniana First Contact, similares aos usados em filmagens.
O novo cenário também motivou uma mudança nas estratégias de guerra.
— Praticamente toda brigada ucraniana tem uma unidade de drones, com capacidade de reparo e também de produção de novos drones — afirma Moita. — Por mais incrível que pareça, um dos principais insumos para o esforço de guerra ucraniano é o polímero, material que a impressora 3D usa para a impressão de drones. Então são levadas muitas caixas de polímero para a linha de frente, junto a granadas, granadas de artilharia, granadas pessoais e por aí vai.
O fim da guerra parece incerto a curto prazo, mas algumas firmas começam a mirar no mercado externo. A produção de drones hoje na Ucrânia é maior do que o que o governo consegue absorver, por questões logísticas ou financeiras. A qualidade dos produtos, testados em ambientes extremos, a engenhosidade das firmas locais e o preço baixo — um modelo conhecido da firma 3DTech, capaz de levar explosivos e granadas, sai por cerca de R$ 1,5 mil — atraíram o interesse de outros países.
Mas Bondar aponta que a expansão terá que aguardar o silenciar das armas.
— Hoje, nenhuma arma ou sistema militar produzido na Ucrânia pode ser exportado, e pode apenas ser vendido ao governo ucraniano — explica. — Mas sim, eu acredito e tenho quase certeza de que esta guerra tornará a Ucrânia líder mundial em sistemas não tripulados, e não apenas sistemas militares, mas também em sistemas comerciais. Nós vimos a transição de sistemas civis para militares, e podemos ver isso acontecer no sentido inverso.
Antes de pensar em expansão, a Ucrânia precisa enfrentar a invasão russa. Há sinais de que Moscou está na iminência de lançar uma nova ofensiva terrestre na região de Sumy, no nordeste ucraniano, com cerca de 50 mil soldados. Os ataques aéreos ao redor do país têm se intensificado.
Apesar de causarem danos físicos e psicológicos às forças de Vladimir Putin, os drones, por si só, não serão capazes de garantir ganhos suficientes para Kiev, e qualquer mudança no campo de batalha depende de armas convencionais, cada vez mais escassas. Ao mesmo tempo, ações ousadas, como as contra as bases russas, servem para elevar o moral em tempos difíceis.
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Autor: Agência O Globo