O governo dos EUA aumentou os investimentos em Wall Street, mas se esqueceu de contratar um gestor
O governo dos Estados Unidos está se tornando o investidor mais poderoso do país, assumindo participações relevantes em firmas para reforçar cadeias de suprimento e gerar retorno aos contribuintes. O Tio Sam, agora acionista de peso, conta com apoio tanto de republicanos quanto de democratas — um raro consenso em Washington que indica que esse novo ativismo acionário vai muito além do governo de Donald Trump.
Dentro dessa forma emergente de “capitalismo de Estado” à americana, os EUA vêm esticando os limites de sua autoridade legal para investir bilhões de dólares em um número crescente de companhias em troca de ações. Um terceiro motor dessa estratégia é superar a China, cujo controle sobre certos materiais e processos industriais expôs fragilidades críticas de segurança nacional para os EUA em meio às tensões comerciais.
Sob Trump, o governo tomou participações na fabricante de chips Intel e em firmas de minerais críticos como a MP Materials e a Lithium Americas. Advogados dizem que alguns conselhos de administração estão ávidos para ter o governo como acionista, enquanto outros receiam ser forçados a ceder participação ou algum tipo de controle em troca de licenças ou outras autorizações.
Alguns executivos acreditam que o investimento dos EUA deu vantagem às suas firmas, embora defensores do livre mercado alertem que há uma lista longa de casos em que a mão pesada do governo trouxe consequências ruins para a economia. Embora alguns democratas critiquem os movimentos por falta de estratégia, a tomada de participações, em certos casos, tem apoio dos dois partidos.
Autoridades de Trump dizem que isso é só o começo. O secretário do Tesouro, Scott Bessent, afirmou que a Casa Branca está mirando setores críticos para a segurança nacional dos EUA. A ideia é evitar dependência excessiva da China, que — segundo autoridades — teria manipulado preços para prejudicar indústrias americanas e obter vantagem estratégica.
“Eu não ficaria surpreso” se os EUA assumissem mais participações em firmas privadas, disse Bessent em um evento da CNBC em 15 de outubro. “Quando você enfrenta uma economia não orientada ao mercado, como a China, precisa exercer política industrial.”
O playbook
Muitas vezes, os alvos da Casa Branca também parecem ser oportunidades de ocasião. Os EUA assumiram sua participação na Intel dias depois de Trump pedir a saída do CEO da firma, argumentando que estava corrigindo um acordo injusto para os contribuintes firmado no governo Joe Biden.
Em novembro de 2024, a administração Biden anunciou que a Intel receberia quase US$ 8 bilhões em subsídios para apoiar o plano de investir US$ 100 bilhões em projetos de semicondutores no país, mas os EUA não receberam nenhuma participação acionária naquele acordo.
Além dos objetivos de segurança nacional, autoridades da Casa Branca e de ministérios dizem que querem gerar retorno para os contribuintes. “Por que estamos dando esse tipo de dinheiro a uma firma que vale US$ 100 bilhões? O que os contribuintes americanos ganham com isso? E a resposta do Donald Trump é: devemos receber uma participação acionária pelo nosso dinheiro”, disse o secretário de Comércio, Howard Lutnick, à CNBC quando a participação na Intel foi concluída.
Em julho, o Departamento de Defesa investiu US$ 400 milhões na MP Materials, que opera uma mina de terras raras na Califórnia. As ações preferenciais e o “warrant” (opção de compra de ações) concedem ao governo 15% da companhia, fazendo dos EUA seu maior acionista.

Como parte do acordo, o governo também garantiu um preço mínimo para alguns de seus produtos de terras raras e disse que o Pentágono encontraria clientes para 100% dos ímãs produzidos em uma nova fábrica por uma década após sua conclusão.
Neste mês, o governo fechou mais dois acordos em minerais críticos, assumindo 5% na canadense Lithium Americas e em uma de suas joint ventures, e 10% na canadense Trilogy Metals, com “warrants” para adquirir mais 7,5% da firma. Além do dinheiro, os EUA aprovaram uma estrada de 211 milhas (cerca de 340 km) para um projeto mineral no Alasca, revertendo uma decisão do governo Biden.
Um investimento dos EUA é “enormemente acelerador, transformacional e valioso”, diz Brian Menell, CEO da TechMet, firma de mineração e investimentos em minerais. O primeiro governo Trump investiu US$ 25 milhões na TechMet em 2020, por meio da U.S. International Development Finance Corporation (DFC, a Corporação Financeira de Desenvolvimento Internacional dos EUA), criada pelo Congresso em 2018 para apoiar projetos de desenvolvimento em países de baixa renda. No governo Biden, a DFC investiu outros US$ 80 milhões.
Uma participação acionária dos EUA reduz o risco do projeto aos olhos de outros investidores e de governos estrangeiros. Menell diz que o envolvimento americano foi um grande argumento de venda quando a TechMet captou US$ 180 milhões com a Autoridade de Investimentos do Catar (QIA).
“Governos em todo o mundo respeitam muito os interesses dos EUA, a menos que sejam completamente estúpidos”, afirma Menell. “Tem sido positivo para nós em todos os lugares.”
Apesar de discussões no início do governo sobre criar um fundo soberano, a Casa Branca diz que não busca montar uma grande carteira de firmas americanas. Ela vê as participações como apenas uma ferramenta dentro do kit para reforçar a cadeia de suprimentos dos EUA. “A questão com participações acionárias é que o presidente está garantindo que o contribuinte não entregue dinheiro sem contrapartidas”, disse um funcionário da Casa Branca, que classificou quaisquer retornos monetários aos contribuintes como um “benefício acessório” aos interesses de segurança nacional.
Segundo esse funcionário, não há uma única pessoa na Casa Branca encarregada de supervisionar o portfólio de investimentos.
Não é tão simples
Críticos observam que virar acionista de uma firma não necessariamente fortalece as cadeias de suprimento. O acordo original dos EUA com a Intel previa subsídios, empréstimos e incentivos fiscais em troca do cumprimento, pela firma, de determinados marcos para construir projetos de semicondutores no país — um empreendimento que a Intel e outras fabricantes de chips disseram não ser economicamente viável sem apoio. Como parte do acordo para converter subsídios e empréstimos em ações, a Casa Branca de Trump removeu esses marcos.
Alguns acordos deram aos EUA influência sobre ações corporativas sem receber ações. Em agosto, Nvidia e AMD concordaram em entregar 15% da receita com vendas de chips de inteligência artificial à China em troca de licenças de exportação. Depois, ainda em agosto, a Casa Branca disse que o acordo não havia sido finalizado — e, de todo modo, a China baniu as vendas. Um porta-voz da Nvidia não comentou. A AMD não respondeu a pedidos de comentário.
Como condição para aprovar a venda da U.S. Steel para a japonesa Nippon Steel, o governo recebeu a chamada “golden share” (ação de classe especial), que lhe dá poder de veto sobre algumas decisões corporativas.
“Exigir uma porcentagem dos lucros ou propriedade acionária para operar em diferentes mercados não passa de um esquema de extorsão”, diz Jeffrey Sonnenfeld, presidente do Yale Chief Executive Leadership Institute.

Os acordos em terras raras desencadearam uma corrida do ouro entre firmas que querem o Tio Sam como investidor. Nesta semana, o The Wall Street Journal noticiou que algumas companhias de computação quântica estão em conversas para ceder participações ao Departamento de Comércio em troca de financiamento.
Y. David Scharf, um dos ex-advogados de Trump, diz que entre 20 e 30 firmas — de setores que vão de minerais críticos a manufatura e robótica — o procuraram para ajudar a articular um investimento dos EUA, lista que ele reduziu a “um punhado” de propostas a órgãos do governo. Embora as discussões de investimento frequentemente visem interesses de segurança nacional, ele afirma que autoridades também buscam retorno monetário positivo.
“Todo mundo está sentado à mesa tentando ganhar dinheiro”, diz Scharf.
O governo não divulgou um balanço abrangente do que ganhou com seus investimentos, mas, anedoticamente, os retornos até aqui são robustos.
Menell, da TechMet, afirma que o governo tem obtido 30% ao ano em seu investimento na firma, que é privada. A MP Materials recentemente negociou por cerca de US$ 83, mais que o dobro do preço de conversão e exercício concedido ao governo no acordo de financiamento.
Em troca de adiar US$ 184 milhões em pagamentos de dívida, o governo recebeu 5% da Lithium Americas — participação avaliada em US$ 93 milhões. E, talvez em seu investimento mais lucrativo, em agosto o governo concordou em comprar 9,9% da Intel a US$ 20,47 por ação, um desconto em relação ao preço de mercado. A ação recentemente negociou por cerca de US$ 38.
À primeira vista, os termos do governo frequentemente parecem dilutivos para os acionistas privados. Mas, no curto prazo, um investimento dos EUA quase sempre veio acompanhado de disparada no preço da ação da firma-alvo. Os acionistas lucraram junto com o governo.
Autoridades de Trump apontaram vários setores vistos como críticos à segurança nacional que podem receber investimentos. Em entrevistas, Lutnick e o próprio Trump sugeriram que contratistas de defesa — que muitas vezes têm o governo americano como seu maior ou único cliente — podem ser alvos.
No evento da CNBC de 15 de outubro, Bessent disse que os EUA identificaram sete setores críticos em que participações acionárias podem entrar na mesa, mas não os nomeou. “Não vamos assumir participações em setores não estratégicos”, afirmou. “Precisamos ter muito cuidado para não exagerar.”
O Departamento do Tesouro não respondeu a pedidos de comentário sobre quais seriam esses sete setores.
Em muitos casos, o governo está apoiando indústrias que tradicionalmente consideraram arriscado ou caro demais operar nos EUA. Abrir uma mina de terras raras é arriscado antes mesmo de se considerar a forte volatilidade dos preços. Siderúrgicas dizem, há anos, que não conseguem competir com firmas estatais chinesas, que vendem alguns tipos de aço a preços que levariam as americanas ao prejuízo. O Congresso aprovou a Lei CHIPS e Ciência (Chips and Science Act), em 2022, em parte porque quase toda a fabricação avançada de chips ocorre em Taiwan.
“Há um senso bipartidário comum de que esses são setores e indústrias nos quais queremos garantir boa produção doméstica e estoques”, diz Owen Tedford, analista da Beacon Policy Advisors. “Existe um certo grau de crença bipartidária de que, mesmo que o método não seja o ideal, o resultado valerá a pena no longo prazo.”
O track record
O histórico do governo ao assumir participações é misto. Para ajudar a estabilizar o sistema monetário, em 2008, no âmbito do TARP (Troubled Asset Relief Program), os EUA tomaram participações em grandes bancos, na seguradora American International Group e em montadoras. Em 2014, autoridades informaram ter recuperado US$ 441,7 bilhões desses investimentos, ante US$ 426,4 bilhões desembolsados — retorno positivo, mas que críticos dizem não ter sido proporcional ao risco.
Embora tomar participações fora de crises seja incomum, especialistas jurídicos afirmam que não há nada inerentemente ilegal nisso. O Congresso autorizou o governo a receber ações por meio da DFC, que participou de alguns acordos em terras raras. A lei que viabilizou o financiamento do acordo com a Intel não tratava explicitamente de o governo receber ações, mas também não proibia. E, como a Intel aderiu voluntariamente ao acordo, não está claro quem processaria.
“Desde que as firmas consintam formalmente com as ações do governo, é improvável que o governo enfrente ações judiciais”, escreveu Peter Harrell, ex-membro da Casa Branca de Biden, no site Lawfare.
O impulso por participações do governo pode continuar mesmo se um democrata vencer a Casa Branca. O senador Bernie Sanders (independente de Vermont) elogiou o acordo com a Intel em comunicado, dizendo que “os contribuintes dos EUA têm direito a um retorno razoável” em troca de subsídios às fabricantes de chips. Alguns integrantes do governo Biden afirmam não haver nada intrinsecamente errado na tática de receber participação acionária em troca de apoio público.
“Uma participação acionária é uma ferramenta de política industrial como um subsídio, um crédito tributário, um empréstimo ou uma tarifa. Pode ser usada de forma inteligente e estratégica, mas também pode ser usada de maneira desajeitada e indevida”, diz Alex Jacquez, diretor de políticas e advocacy da Groundwork Collaborative e ex-integrante do Conselho Econômico Nacional da Casa Branca no governo Biden. Jacquez afirma que Trump parece tratar os investimentos acionários como “um jogo de vaidade” e “um portfólio pessoal”.
Presidentes-executivos de algumas das maiores corporações americanas soaram o alarme em um encontro no mês passado, em Washington. Eles expressaram forte ansiedade de que Trump esteja reivindicando controle sem precedentes sobre a governança das firmas. “Eles veem isso como um grande erro”, diz Sonnenfeld, que organizou a reunião.
Muitos líderes de grandes companhias rejeitam a ideia de o governo virar acionista, mas não falam publicamente por medo de se tornarem alvo de Trump, afirma Sonnenfeld. Além disso, alguns veem o apoio do governo dos EUA como forma de minar rivais e obter uma oportunidade de curto prazo “para conseguir um salto breve na ação”, diz.
No longo prazo, há o risco de a mão pesada do governo minar as condições que tornaram a economia americana bem-sucedida em relação a seus pares, afirma Norbert Michel, vice-presidente do Cato Institute, um think tank libertário.
“Não é preciso ir muito longe para chegar a um sistema econômico completamente diferente”, diz Michel. “Não existe uma linha claramente definida que diga: ‘Bem, se o governo só tiver 5% em cinco firmas, então não é fascismo ou não é socialismo’. Não deveríamos estar fazendo isso, porque é para lá que isso leva.”
O que vem depois de os EUA montarem sua carteira é, em grande parte, desconhecido. No caso da Intel, a Casa Branca concordou em não assumir direitos de governança. Mas já colocou o dedo na balança em outros arranjos. No mês passado, Trump exerceu seu poder de veto na U.S. Steel pela primeira vez, bloqueando uma decisão de interromper o processamento de aço bruto em uma planta em Illinois. Em setembro, um funcionário da Casa Branca disse à Barron’s que interromper o processamento “talvez fosse uma decisão firmarial sensata”, mas contrária aos interesses dos EUA.
Uma porta-voz da U.S. Steel afirma que, de qualquer forma, não haveria demissões e chamou o governo Trump de “grande amigo da indústria do aço americana”.
Escreva para Joe Light em joe.light@barrons.com
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Esta notícia foi originalmente publicada em:
Fonte original
Autor: Barron’s