OPINIÃO: O seu FGTS é um fundo de garantia ou fundo de interesse?
O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) foi instituído em 1966 com o propósito de proteger o trabalhador, funcionando como uma espécie de poupança compulsória. Contudo, ao longo dos anos, sua estrutura e aplicação têm se afastado de seu propósito original e gerado debates acerca de sua eficácia e dos efeitos colaterais no mercado de trabalho brasileiro.
Equivalente a 8% do salário bruto mensal, o valor é pago pelo empregador e depositado em contas vinculadas ao trabalhador que possui registro em carteira de trabalho. O saldo pode ser acessado em situações específicas, como demissão sem justa causa, aposentadoria, compra da casa própria, em casos de doenças elencadas e outras condições previstas por lei. O trabalhador também pode aproveitar o saque-aniversário, retirando uma parte do saldo anualmente, mediante adesão ao programa.
Recentemente, uma novidade foi anunciada: a possibilidade de trabalhadores contraírem empréstimos consignados utilizando o FGTS como garantia. Embora à primeira vista possa parecer uma alternativa vantajosa em razão dos índices de juros mais baixos incidentes, essa prática pode levar ao superendividamento e comprometer ainda mais a já limitada autonomia financeira do trabalhador.
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Em vez de facilitar o acesso ao próprio dinheiro, cria-se um ciclo de dependência do crédito, beneficiando principalmente as instituições financeiras e reduzindo a segurança financeira do trabalhador em momentos de vulnerabilidade, como a perda do emprego.
Em um país onde cerca de 70% dos trabalhadores com carteira assinada recebem até dois salários mínimos, de acordo com o IBGE, o crédito se torna uma ferramenta essencial para viabilizar compras básicas, como eletrodomésticos e outros bens duráveis.
O cenário se torna ainda mais preocupante quando ouvimos o Ministro do Trabalho e do Emprego divulgar que dos 12 milhões de trabalhadores que receberão recursos do saque-aniversário do FGTS, 9,5 milhões de pessoas, ou seja, 80% deles, não vão poder sacar o valor integral, pois haviam utilizado a modalidade de crédito antecipado perante algum banco.
Isso demonstra que, ao longo do tempo, a apropriação do FGTS como garantia de crédito, além da falta de educação financeira, acaba impedindo o trabalhador de fazer escolhas bem informadas com os próprios recursos.
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O cerne da questão vai além. O que está em jogo é o uso indiscriminado do FGTS, um dinheiro do trabalhador, pago pelo empregador, que virou um instrumento de controle político e econômico.
Outra crítica bastante contundente ao FGTS reside na inflexibilidade que impõe ao trabalhador que deseja pedir demissão. Ao pedir demissão, abre mão do acesso ao saldo do FGTS, da multa rescisória de 40% paga pelo empregador e do seguro-desemprego. Essa realidade desencoraja pedidos de demissão, levando alguns a permanecerem em posições insatisfatórias, ou mesmo a buscarem alternativas artificiais para romper o vínculo, com resultados questionáveis.
Um artifício que infelizmente é comum, é o pedido de “acordo informal de demissão”, em que as partes combinam uma dispensa sem justa causa, permitindo que o empregado acesse o FGTS e receba o seguro-desemprego, e paralelamente, o empregado se compromete a restituir ao empregador parte da multa do FGTS. Esse arranjo evidencia uma fraude trabalhista que expõe empregados e empregadores.
Além do risco jurídico, essa prática evidencia um problema estrutural: o FGTS, criado com a justificativa de proteger o trabalhador, acaba incentivando fraudes e distorcendo as dinâmicas naturais do mercado de trabalho.
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O empregado, que deveria ter autonomia para decidir seu futuro profissional, se vê preso a um sistema que o penaliza financeiramente caso queira buscar novas oportunidades. O empregador, por sua vez, também é prejudicado, pois se vê forçado a absorver custos adicionais quando precisa desligar um funcionário, mesmo que este esteja insatisfeito e já não apresente um bom desempenho.
O impacto desse quadro vai além das fraudes pontuais e se reflete na produtividade das firmas e na moral dos trabalhadores. Ambientes corporativos podem se tornar tóxicos quando há empregados que desejam sair, mas permanecem apenas por razões financeiras, muitas vezes reduzindo seu engajamento e comprometendo a qualidade do trabalho.
Esse fenômeno, conhecido como “presenteísmo”, afeta diretamente a eficiência das organizações e pode até mesmo prejudicar a saúde mental dos trabalhadores, que se sentem presos a um ciclo vicioso em que não podem simplesmente seguir novos rumos profissionais sem arcar com prejuízos monetários significativos.
A insatisfação dos trabalhadores tem se refletido no aumento expressivo de ações judiciais por rescisão indireta, modalidade em que o empregado solicita a rescisão do contrato devido a faltas graves cometidas pelo empregador, o que permite com que tenha acesso aos benefícios decorrentes de uma demissão sem justa causa.
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Dados do Tribunal Superior do Trabalho (TST) revelam que, até junho de 2023, foram registrados 139.185 novos casos envolvendo rescisão indireta. Em estados como Mato Grosso do Sul, o aumento foi de 81,03% entre 2022 e 2023, enquanto São Paulo viu um salto de 91.138 para 144.912 ações no mesmo período.
Além das questões individuais e diretamente relacionadas aos trabalhadores, há críticas sobre a utilização dos recursos do FGTS pelo governo.
Os fundos arrecadados são frequentemente direcionados para projetos de interesse governamental que embora possam ser direcionados a áreas de necessidade pública, na prática, são financiados por recursos que deveriam pertencer ao trabalhados, sem que este tenha qualquer influência sobre seu uso e gestão.
O Relatório de Gestão do FGTS de 2022, publicado pelo Conselho Curador do FGTS, revelou que aproximadamente 70% dos recursos do fundo foram destinados ao financiamento habitacional, especialmente para programas como o Minha Casa, Minha Vida. Outros 20% foram direcionados para projetos de infraestrutura e saneamento básico, enquanto apenas uma pequena parcela permaneceu disponível para saques por parte dos trabalhadores.
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Além disso, parte dos recursos do FGTS é aplicada em títulos públicos, beneficiando diretamente o Tesouro Nacional. Esse modelo reforça a ideia de que o FGTS funciona mais como um mecanismo de arrecadação estatal do que como um verdadeiro fundo de proteção ao trabalhador.
A centralização da gestão desses valores impede que os trabalhadores tenham autonomia sobre seu próprio dinheiro. Diferente de uma poupança privada, em que o titular pode decidir quando e como utilizar os recursos, o FGTS está sujeito a regras rígidas de saque, determinadas pelo governo, e cujas regras podem ser facilmente mudadas pelo governo para fins de atender os próprios interesses, sem ingerência pelo trabalhador.
FGTS, criado com a promessa de proteger o trabalhador, acabou se tornando um instrumento de retenção e controle. Em vez de fortalecer a autonomia financeira, reforça a dependência. Em vez de estimular mobilidade e liberdade profissional, penaliza a iniciativa. Ao servir mais aos interesses do Estado e do sistema monetário do que àqueles que realmente contribuem com o fundo, o modelo atual escancara sua urgência por revisão.
A pergunta que fica é: até quando o trabalhador aceitará financiar, com seu próprio suor, um sistema que o impede de decidir livremente sobre o destino do que é seu por direito?
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*Cláudia Abdul Ahad Securato é sócia do Securato & Abdul Ahad Advogados, professora da Saint Paul Escola de Negócios
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Esta notícia foi originalmente publicada em:
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Autor: E-Investidor