Um ano e meio após a RJ, Dia gasta R$ 296 milhões e concentra caixa em CDB ligado ao Banco Master
Quando a rede de supermercados Dia mudou de mãos, em maio do ano passado, uma luz no fim do túnel parecia possível. Dois meses antes, o grupo havia recorrido à recuperação judicial, com mais de R$ 1 bilhão em dívidas, num processo que envolveu o fechamento de centenas de lojas e corte de funcionários.
O grupo espanhol de mesmo nome, então controlador da rede, decidiu vender a operação brasileira por simbólicos 100 euros a um fundo que, naquele momento, não se tinha o nome de seu principal investidor revelado. Sua identidade só ficou pública meses depois: o fundo era investido pelo empresário Nelson Tanure e gerido pela Trustee, do banqueiro Maurício Quadrado, ex-sócio do Banco Master.
A transação ocorreu em um formato conhecido no mercado como “venda a valor negativo” — na prática, o Dia pagou para alguém assumir o negócio. Antes de entregar o controle ao fundo investido por Tanure, a matriz espanhola colocou 40 milhões de euros (cerca de R$ 214 milhões) no caixa da filial brasileira para bancar a reestruturação e dar fôlego ao Dia em seu processo de reestruturação.
Mais de um ano e meio depois, porém, a companhia já consumiu R$ 296,2 milhões de caixa, segundo a administradora judicial — mais do que o próprio aporte da matriz. E, novamente, a liquidez da companhia ligou um sinal de alerta.
O ponto de preocupação é que, além de já ter consumido integralmente os recursos aportados pela matriz, o Dia mantém atualmente 66% de suas aplicações financeiras — cerca de R$ 161,2 milhões — em um único CDB, emitido pelo BlueBank, instituição ligada ao Banco Master, de Daniel Vorcaro.
A instituição de Vorcaro vem sendo acompanhada de perto pelo mercado e pela administradora judicial em função das dúvidas sobre sua capacidade de honrar esses papéis. O BlueBank chegou a ser vendido para Maurício Quadrado, mas a operação foi barrada recentemente pelo Banco Central.
A Expertise Mais, administradora judicial do Dia, descreve a situação como “importante risco ao capital de giro”, observando que se trata de recursos que deveriam permanecer disponíveis para cobrir despesas operacionais e pagamentos previstos no plano de recuperação.
Em nota enviada ao InvestNews, o Dia diz que “o uso dos recursos de caixa ocorre dentro do planejado na reestruturação”. A companhia afirma que o dinheiro foi utilizado para investimentos nos estoques e para o fechamento de 343 unidades e 3 centros de distribuição, além da reforma das fachadas das atuais 240 lojas. O Dia afirma ainda que os recursos investidos no BlueBank, que remuneram 109% do CDI, serão resgatados no vencimento, previsto para 26 de dezembro deste ano.
Ao administrador judicial, a diretoria da firma acrescentou ainda que a operação com o BlueBank foi “instruída e autorizada pelos controladores do Grupo Dia por intermédio da sua gestora”. Além dos recursos no BlueBank, a companhia também tem dinheiro nos bancos Daycoval (R$ 52,9 milhões), Itaú (R$ 16,5 milhões) e Santander (R$ 15,2 milhões). Em paralelo, o fundo investido por Tanure levantou R$ 40 milhões em janeiro para aportar no caixa do Dia.
Os responsáveis pelo acompanhamento da RJ também manifestaram preocupação com contratos de consultoria jurídica e financeira firmados após a troca de controle. Sem citar exemplos, a Expertise Mais solicitou mais detalhes sobre as prestações de serviços e advertiu para o risco de contratações indevidas.
Nos dois casos, o alerta é o mesmo: a falta de liquidez pode asfixiar o caixa da firma e comprometer o cumprimento do plano de recuperação judicial.
Fôlego do ICMS
Nos últimos meses, o que vem ajudando a garantir o fluxo de caixa do Dia são as vendas de créditos de ICMS, um tipo de “dinheiro tributário” acumulado ao longo dos anos. Esses créditos surgem quando a firma paga mais imposto do que o devido nas suas operações diárias.
Funciona assim: imagine que o supermercado compre R$ 100 mil em leite de um fornecedor. Nessa compra, ele paga R$ 18 mil de ICMS (a alíquota média do setor). Depois, ao vender esse leite ao consumidor final, fatura R$ 90 mil. Desse valor, R$ 16,2 mil se referem ao ICMS. A diferença entre o que foi recolhido na compra e na venda – R$ 1,8 mil – fica como crédito tributário a favor da firma.
Com o tempo — e com milhares de operações desse tipo —, esses créditos se acumulam e podem ser vendidos a outras companhias que tenham impostos a pagar. Essa operação se tornou uma das principais fontes de liquidez do Dia: R$ 196 milhões já foram arrecadados com créditos de ICMS desde o início da recuperação judicial.
Cada cessão de crédito funciona como uma injeção de fôlego, usada para pagar folha, fornecedores e despesas básicas. Mas o administrador judicial adverte que “não há expectativa” de novos créditos serem homologados pela Secretaria da Fazenda de São Paulo nos próximos meses.
O Dia afirma que tem ainda mais de R$ 350 milhões em créditos de ICMS, que, “em um curto espaço de tempo, reforçarão seu caixa”. “A situação financeira do Dia Supermercados, portanto, está em linha com o plano de recuperação judicial aprovado”.
Raiz do problema
Segundo uma fonte próxima da companhia, a crise que hoje ronda o Dia começou bem antes da troca de controle — e foi, em parte, fabricada dentro de casa. O modelo original da rede era simples e eficiente: lojas pequenas, com pouco custo e preços baixos, voltadas para o consumidor de vizinhança.
“Era um negócio de escala e simplicidade: o caminhão chegava, abria-se a caixa e o produto ia direto pra gôndola. Não tinha luxo, mas dava giro”, diz a fonte. Com o tempo, porém, outras gestões tentaram deixar o Dia mais “premium”, ampliando a oferta de produtos e reformando lojas para disputar mercado com as lojas Minuto Pão de Açúcar e Carrefour Express.
“O modelo perdeu o foco e ficou caro demais para o que entregava. O Dia deixou de ser o mercado barato da esquina e passou a ser o supermercado pequeno que cobrava igual aos grandes. O cliente deixou de enxergar um diferencial”, observa outra fonte.

A matriz espanhola do Dia, controlada pela gestora russa LetterOne, ainda tentou reverter o quadro — mas uma mudança de executivos ligados à casa fez os planos mudarem de rumo. Em meados de 2023, o então chairman, o alemão Stephan DuCharme, defendia um plano de reestruturação da operação brasileira, que previa novos aportes na rede.
A estratégia, porém, foi abandonada após a chegada do britânico Benjamin Babcock, que substituiu DuCharme em setembro daquele ano e passou a defender a venda do ativo no Brasil, o que ocorreu meses depois.
A venda
Em janeiro de 2024, surgiram quatro propostas: duas de fundos de investimento estrangeiros, uma de um empresário internacional do varejo e outra do Fundo Lyra II, administrado pela Trustee, do Banco Master, e que tem Nelson Tanure como investidor.
Em todos os casos, o modelo previa que a matriz espanhola fizesse um aporte no caixa do Dia Brasil como condição para a transação.
A proposta inicial do fundo investido por Tanure exigia um aporte de 120 milhões de euros, valor que foi considerado alto pela matriz – e o que fez o negócio esfriar por alguns meses. Diante do impasse e da falta de um comprador disposto a assumir o risco, a companhia optou por seguir para a recuperação judicial em março do mesmo ano.
Na época, as dívidas somavam cerca de R$ 1,02 bilhão — valor que, segundo o plano aprovado, foi reduzido para R$ 609,2 milhões após negociações com credores e fornecedores.
Com a RJ, a firma começou a recuperar caixa e estabilidade operacional. Pouco tempo depois, com a recuperação judicial surtindo efeito no desempenho monetário do Dia, a matriz espanhola reiniciou o processo de venda.

O negócio foi fechado no fim de maio de 2024, e o grupo passou às mãos do Fundo Lyra II, gerido pela Trustee e investido por Tanure, com uma nova proposta: o pagamento simbólico de 100 euros mais o compromisso do grupo espanhol aportar 40 milhões de euros no caixa da filial brasileira – três vezes menos do que havia sido pedido em janeiro.
Nos bastidores, a entrada de Nelson Tanure no Dia vinha acompanhada de uma ambição maior. O empresário pretendia usar a aquisição da rede como plataforma para uma futura integração com o GPA, onde chegou a deter cerca de 9% das ações.
A ideia era criar um grupo de varejo mais robusto, combinando a capilaridade de lojas de vizinhança do Dia com a estrutura logística e a escala de compra do GPA. Em março de 2025, fundos ligados a Tanure propuseram a renovação do conselho do GPA e apresentaram três nomes indicados por ele, numa tentativa de ganhar influência sobre a companhia.
Mas a articulação não prosperou: apenas um dos três foi eleito, e, semanas depois, Tanure vendeu toda a sua participação no grupo responsável pelas redes Pão de Açúcar e Extra. Com isso, a ideia de fusão entre as redes perdeu tração e foi abandonado.
O Dia, hoje em dia
O plano de recuperação judicial do Dia previa que o grupo voltasse a gerar lucro operacional (Ebitda) até o fim de 2024, marco que simbolizaria o fim da fase crítica e a retomada de fôlego operacional. Mas os números atuais mostram que a meta ainda não foi alcançada.
De acordo com os relatórios da administradora judicial, o resultado operacional em agosto consumiu R$ 16 milhões de caixa. Um ano e meio após o início da RJ, o Dia mantém uma operação menor, mais concentrada, só que ainda deficitária. Das mais de 500 lojas em março do ano passado, restam hoje 240 unidades em funcionamento.
A receita mensal gira em torno de R$ 135 milhões, valor ainda insuficiente para cobrir custos fixos e despesas operacionais. A administradora judicial descreve o desempenho das lojas como de “baixo fluxo de clientes, perda de competitividade e margens operacionais comprimidas”.
Segundo uma fonte próxima à companhia, a estratégia de transformar as lojas do Dia em “miniatacarejos de bairro” não se mostrou eficaz. “Uma família não faz compras em lojas menores, e a reposição também é mais complexa”, diz.
O relatório mais recente conclui que, mesmo com o fechamento de unidades deficitárias e medidas de racionalização, a firma ainda não conseguiu restabelecer o equilíbrio monetário.
O Dia afirma que seu plano de recuperação judicial segue conforme o cronograma previsto e aprovado. “Com resultados positivos, a recuperação judicial equalizou as dívidas e os pagamentos [dos credores] estão programados para iniciar em outubro de 2026″.
Pela legislação, uma firma pode deixar o regime de recuperação judicial dois anos após a homologação do plano – prazo em que precisa comprovar que está realizando os pagamentos conforme o combinado. Se não houver equilíbrio monetário até lá, a prorrogação da RJ dependerá de uma nova decisão judicial.
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Esta notícia foi originalmente publicada em:
Fonte original
Autor: Rikardy Tooge